Considerado para sempre como um ícone do cinema, “All About Eve” é uma obra irônica, com personagens manipuladores, rostos marcados e um diretor consagrado. Um filme grandioso sobre rivalidade, ambição e mentira.
Vocês sabem tudo sobre Eve. O que pode haver que vocês ainda não saibam?
Apesar de essa ser a fala dirigida ao público que Addison DeWitt, no momento que Eve Harrington sobe para pegar a sua estatueta no prêmio Sarah Siddons, o espectador de fato nada sabe sobre a tal Eve, e como haveria de saber? Tudo o que está exposto na tela é um discurso infalível e uma homenagem daquela que logo se percebe ser a mais importante cerimônia de premiação do teatro americano, além de um rosto humilde da atriz revelação cuja carreira meteórica despencou as grandes divas dos olhos da mídia, e as mesmas, que se limitam a ficar olhando desgostosas ao sucesso que a jovem e talentosa intérprete usufrui no momento. Dentre as inúmeras citações que a narração em off de DeWitt apresenta de forma cordial e solene, estão Karen Richards, seu marido e dramaturgo Lloyd Richards, o diretor Bill Sampson, o produtor Max Fabian e a grande estrela, ou melhor, “a estrela de verdade” Margo Channing, atriz teatral. Até aquele momento tudo o que o espectador realmente sabe sobre a atriz a ser consagrada naquela noite é que sua carreira atingiu o auge mais rápido do que qualquer um poderia sequer imaginar. A história de Eve, mostrada a partir de um flash-black, vai surpreender, chocar e fazer crescer a revolta do espectador, que ao final, terá assistido a uma obra-prima como poucas, única e por mais que o roteiro diga o contrário, sincera onde a decadência, o preço pela fama, as mentiras, a ambição e as intrigas esperam triunfantes pela revelação final.
O título original do longo dirigido por Joseph L. Mankiewicz fora escolhido pelo produtor Darryl F. Zanuck, a partir da frase destaca logo acima. Antes, o roteiro assinado pelo mesmo homem que dirigiria o filme dava o nome para a produção de “Best Performance” ('Melhor Atuação', na tradução livre), já que se baseava em um conto publicado na revista Cosmopolitan. Seu conteúdo trazia à tona a história da atriz austro-húngara Elisabeth Bergner que segundo reportara à escritora Mary Orr, havia contratado uma grande fã sua como assistente pessoal, na década de 40. De acordo com a própria atriz européia, a jovem moça que a adorava acabou por boicotar a sua carreira, transformando-se em uma estrela do dia para a noite. Sem querer dizer o nome da “solapadora”, Orr se viu obrigada a apelida-la de Eve, batizando a história com o título The Wisdom of Eve. Mankiewicz, com o intuito de adaptar o conto, trocou os nomes dos personagens, criou outros assim como novas situações, e como seu projeto inicial seria relatar o enredo de uma atriz em fase de decadência, aprofundou a personagem que substituiria o nome de Bergner, chamando-a de Margo Channing. Depois de muitas mudanças feitas pelo diretor e roteirista, alguns a pedido do produtor Zanuck, muitos atores e atrizes de grande renome foram cotados para os papéis do filme.
Na verdade, uma das poucas intérpretes que manteram-se no projeto desde o início foi Thelma Ritter, veterana atriz do cinema e uma das quatro mulheres indicadas ao Oscar pelo seu trabalho no longa. Bette Davis surgiu como opção depois de atrizes como Barbara Stanwyck, Susan Hayward e Marlene Dietrich recusarem e Claudette Colbert ter sofrido um acidente e machucado as costas antes mesmo do início das gravações. Segunda a própria Davis, nomeada ao prêmio da Academia pela personagem Margo Channing, o trabalho no filme proporcionado a ela por Mankiewicz salvou sua carreira do limbo, conforme disse em uma entrevista datada de 1983. Antes de Anne Baxter surgir como alternativa para o papel de Eve Harrington, Jeanne Craine fora a escolhida, mas engravidou e perdeu a chance, dando oportunidade para Baxter, que receberia a indicação ao prêmio do Oscar. Para Bill Sampson, Ronald Reagan e John Garfield foram opções, mas quem ficou com o papel foi Gary Merrill e Nancy Oliver esteve cotada para atuar como Karen Richards, personagem que ficaria mais tarde com Celeste Holm, outra indicada ao prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante na cerimônia do Oscar. Antes que o premiado ator George Sanders fosse o escolhido para interpretar Addison DeWitt no filme, Jose Ferrer foi uma das opções fracassadas. Quem também não participaria do filme, não fosse pela resistência de Mankiewicz, seria Marilyn Monroe, que segundo afirmava o produtor Zanuck, ela só seria capaz de fazer comédias. No final das contas ficou a cargo dela fazer a Srta. Caswell em 'A Malvada'.
Talvez por conta dos recordes que o filme conquistara na cerimônia do Oscar em 1950, batendo a obra-prima máxima de Billy Wilder, Crepúsculo dos Deuses na categoria de Melhor Filme e Diretor, arrematando seis prêmios dos quatorze que disputava, número que seria atingido somente 47 anos depois por Titanic, ou então pelo sucesso que fez com o público, o prêmio fictício do início (e fim) de 'A Malvada' virou realidade em 1952, quando Joseph L. Mankiewicz e mais um grupo de amantes por teatro criaram um prêmio semelhante, incluindo nas estatuetas entregues. As próprias Bette Davis, Anne Baxter e Celeste Holm já saíram agraciadas do prêmio.
O filme tornou-se muito conhecido entre a mídia e o público até anos depois de seu lançamento nos cinemas. Ainda que no mesmo ano da criação do prêmio de Mankiewicz, uma versão do filme fora adaptado para o rádio, em 1970 estreou o musical Applause da Broadway, vencedora do Tony, onde Anne Baxter seria a intérprete de Margo Channing.
Enfim, depois de me apegar muito aos bastidores e preparativos de “All About Eve”, é hora de analisar o elenco. E que elenco! Pobre Claudette Colbert, mas até que seu acidente ajudou e muito para a imagem posterior do filme, já que Bette Davis é considerada uma das melhores atrizes da história do cinema e sua Margo Channing, uma personagem eterna. Comecemos por ela, então:
Bette Davis
11 vezes indicada ao Oscar e premiada duas vezes. As personagens de Bette Davis e seu carisma, brilho intenso e talento entraram para a história e ela, consagrada agora mundialmente e eternamente. Sua atuação em 'A Malvada' é considerada por mim, a melhor de todo o elenco. Davis exprime bem toda a grande estrela que representa Channing no filme, com suas posições corretas e gestos elegantes, a atriz do teatro é ao mesmo tempo detestável, fazendo-se passar por má, ainda que esse seja o papel de outra. A ironia, o egocentrismo e a arrogância de Margo são visíveis ao público, e ao mesmo tempo, uma mistura de caridade e compaixão aumentam ainda mais a profundidade da personagem, que a atriz sabe fazer como ninguém. Quando o longa começa, fica a expectativa para ver em ação a grande Bette Davis, e no momento que ela finalmente aparece, ouvem-se gritos daqueles que assistem: “É ela! Olha ela aí!”. Deslumbrante em todos os aspectos, os olhos de Bette Davis mais uma vez inundam a tela, ainda que em preto e branco, e causam impacto silencioso no espectador, que imagina o olhar compenetrado e venenoso invadindo o set de filmagem, onde todos, de fato, assistiram a mais uma interpretação magnífica da grande estrela do filme, que na verdade, nunca deixou de ser Bette Davis.
Anne Baxter
Manipuladora, bela e mentirosa. Ela interpreta Eve Harrington, a ardorosa fã de Margo Channing. Sua ambição de um dia se tornar um grande atriz do teatro, como o seu ídolo, mais a sua inocência e discrição levam o espectador a trocar os papéis assim que a personalidade verdadeira de Baxter é revelada. Aquela que o público pensava ser “a malvada”, passa a ser a vítima da história toda e vice e versa. Anne Baxter compõe sua Eve com perfeição, cuja humildade é transformada em arrogância da água pro vinho, lógico que de acordo com a coerência inegável do roteiro bem construído. A carreira surpreendente de iniciante já leva a antiga aspirante a atriz a receber o prêmio mais importante do teatro, que numa solidificação da imagem, conta como ela consegui tal feito, sendo que oito meses antes, ela era uma total desconhecida. Vale ressaltar que Baxter não exagera em momento algum, não se faz de coitadinha insuportável no início e nem vira uma mulher grossa , com o nariz sempre empinado. Ela faz tudo na medida do correto, mas com brilho de exatidão. Uma grande pequena atuação.
Celeste Holm
Outra atuação que mostra como a direção de Mankiewicz consegue ser exata em todos os aspectos, incluindo na coordenação do elenco. Holm é uma atriz menor que Bette Davis e Anne Baxter, mas sua atuação é suficientemente convincente pra manter o espectador satisfeito com sua performance. Ela, assim como todos aqueles que rodiavam Eve, sentem-se enganados e chocados quando a segunda cara da jovem fã é posta para exposição. Na verdade, o choque que a sua personagem, Karen Richards, compõe é muito devido ao fato de ter sido ela que levou Eve até o camarim de Margo Channing, que fez o que pôde para manipular as vontades do alvo de sua admiração. Celeste Holm, no entanto, é boa o bastante pra fazer Karen parecer alguém traído, elegante e prestativa, com carisma. Excelente atuação, ainda que oculta perante o brilho das protagonistas.
Thelma Ritter
Uma grande atriz pouco aproveitada. Talvez seja a melhor descrição de Thelma Ritter, atriz que garante as principais risadas de “All About Eve”. Ela não faz uma personagem importante, nem se destaca pela elegância nem nada. Seu chamativo mais interessante é o modo de falar, único, diretor e sincero, típico de Ritter. Assim como fez em Janela Indiscreta, ela oculta os grandes astros e estrelas do filme nos poucos minutos que está no ar. No filme de Alfred Hitchcock não foi diferente. O brilho incessante de James Stewart e a beleza inconfundível de Grace Kelly deram lugar para o sarcasmo de Thelma Ritter. Em cenas de 'A Malvada' ela chega a depositar todos os olhares para as suas expressões impacientes, que antes focalizavam sempre Bette Davis ou então, Anne Baxter. Em diálogos rápidos e inteligentes, os dela são os mais criativos, com tons cômicos que garantem os melhores momentos de descontração do longa. Infelizmente, o seu talento não fora tão bem aproveitado pelos diretores, que embora lhe dessem oportunidades de boas atuações, ainda que o mérito seja praticamente todo dela, a atriz quase sempre estava muito bem em papéis de empregada doméstica, desta vez Birdie Coonan, que por algum motivo, sua personalidade enquanto atriz lembrava uma.
George Sanders
A elegância e o charme de George Sanders certamente levaram o ator a receber o prêmio da Academia de Melhor Ator Coadjuvante. Sua atuação é excepcional, seja nos diálogos ou nos seus olhares captadores. O ator faz de Addison DeWitt um personagem ainda maior que Mankiewicz havia preparado para ele. Sua narração em off é certeira e correta, com inúmeras citações de dramaturgos antigos e atores e empreiteiras e diretores e produtores e casas de shows e teatros, o charme visceral entra em cena imponente. Não é de longe a melhor a atuação do filme, cujo brilho prende-se todo no talento do elenco feminino, mas a interpretação dele foi a única que rendeu o Oscar para o renomado elenco, entretanto, mais merecido impossível. Uma atuação cujo principal mérito corresponde à elegância e o respeito que ele impõe, sempre que entra em cena.
Posso resumir o trabalho dos outros atores como excelentes igualmente, já que não tenho muito mais o que falar do restante do elenco. Destaque apenas para a jovem e desconhecida Marilyn Monroe, que faz a menina Caswell de forma interessante e cômica. A atriz que mais tarde viria a cometer suicídio ainda teria tempo para fazer bonito em outros filmes, mais ainda com sua beleza estonteante. Quanto a Lloyd Richards, interpretado por Hugh Marlowe, faz seu trabalho com eficiência, mas não brilha tanto quanto os outros, sendo ele destaque a parte dos coadjuvantes, cujo mérito é ser somente um bom ator nos momentos propícios.
Mankiewicz dirige e escreve com primor nítido nesse seu trabalho mais encantador. A Malvada é uma obra-prima grandiosa em todos os aspectos. Os figurinos belos e visivelmente de grifes famosas, a fotografia escura e extremamente branca na luz, além da luxuosa direção de arte, com cenários de bastidores e que demonstra bom gosto na escolha dos objetos que enfeitam os cenários. No final, Mankiewicz deixa claro que a história parece que vai se repetir quando Phoebe aparece dentro do apartamento de Eve Harrington, fazendo o espectador reviver os momentos iniciais do filme, quando a personagem de Anne Baxter ainda era uma “ilustre desconhecida”.
Clássico único e eterno do cinema com um dos elencos mais formidáveis e brilhantes da história, onde a direção e roteiro caminham de mãos dadas para entregar ao público uma obra imortal dos anos dourados de Hollywood. Obrigatório, simplesmente imperdível.