Existem certas produções artísticas (cinema, literatura, música, pintura, etc.) que escapam a comentários, críticas e a quaisquer formas de análise tamanha é a grandiosidade significativa, sensível e imagética que essas obras conseguem imprimir em seus espectadores. Assim é O segredo de Brokeback Mountain. Uma produção belíssima, de apuradíssima sensibilidade que apenas assistindo (e aqui emprego assistir no sentido literal que significa ver com atenção e zelo) é possível sentir, contemplar e apreciar cada cena, olhar, toque e vibração proporcionada pela película. A dificuldade para falar de Brokeback advém da principal característica da produção: ela é essencialmente de cunho imagético. Explico-me. As cenas que compõem a produção primam muito mais pelo olhar das personagens, pelos seus gestos, toques, jeitos e trejeitos do que por diálogos, embora estes também tenham a sua importância.
Signal, Wyoming, 1963, dois jovens se conhecem após conseguirem um serviço de pastoreio de ovelhas em uma montanha chamada Brokeback. Um deles, Jack Twist (Jake Gyllenhaal) deseja ser cowboy e o outro, Ennis del Mar (Heath Ledger) pretende se casar após o término do serviço e levar uma vida dita normal como rancheiro.
Durante os meses que passam na montanha Brokeback, Ennis e Jack estreitam a aproximação um com o outro e iniciam, timidamente, um relacionamento complexo, de profunda intimidade, sustentados por uma cumplicidade e amor que passam a nutrir um pelo outro. Assim, gradativamente, essa cumplicidade e amor tornam-se vitais para ambos que devem esconder esse segredo de tudo e todos. Com o passar dos dias e noites frias em Brokeback eles tornam-se bons amigos e após uma inesquecível noite de rigoroso frio os dois tornam-se bem mais que bons amigos e passam e descobrir um sentimento, até então confuso e estranho que os envolve. Essa noite é o marco para um lindo, dramático e conflituoso romance. Não utilizo o gênero romance em vão, afinal o filme é uma narrativa cuja trama central envolve Ennis e Jack e as demais subtramas desenvolvem-se ao redor da trama principal, bem como os conflitos que permeiam o relacionamento dos amantes.
Dirigido magistralmente por Ang Lee, Brokeback traz um casal dicotômico. Explico-me. Enquanto Jack Twist é o mais “saidinho”, mais articulado e deixa-se levar pelas emoções, Ennis del Mar é o espelhamento contrário de Jack. Ennis é retraído, fala somente o necessário (parece que as palavras pesam-lhe na boca) e é guiado pela razão como se a cada movimento e palavra sua fosse quebrar valiosas peças de porcelana. Ennis não se sente à vontade no mundo. No entanto, ainda que os vaqueiros formem um par antitético o limiar que os separa, simultaneamente, os aproxima: ambos têm um passado familiar marcado por desafetos e perdas. Ennis perdeu os pais ainda garoto e Jack foi “abandonado” pelo pai, que apesar de tê-lo criado sempre se mostrou distante afetivamente.
É nesse cenário, com todas essas lacunas que aproximam e afastam Ennis e Jack que o amor entre eles floresce. Na primeira noite que transam, parece que a transa foi apenas conseqüência de um desejo sexual avassalador, oriundo de meses sem nenhum tipo de contato sexual, e no dia seguinte Ennis faz questão de dizer a Jack que não é bicha, enquanto este apenas o olha e diz que ninguém precisa ficar sabendo. Após o término do trabalho na montanha Brokeback os vaqueiros voltam para suas casas, para a vida real e socialmente aceita. Ennis vai se casar e Jack tentará ganhar dinheiro competindo em rodeios. Antes de irem embora da montanha, os dois têm uma pequena briga desencadeada por uma brincadeira feita por Jack. Trocam socos e sujam-se de sangue. Essa cena será o link para a última cena do filme e uma das mais belas, simples e tocantes que já vi e ouso, inclusive, a colocá-la no rol de cenas marcantes no cinema mundial.
Ao chegarem às suas respectivas cidades, Ennis casa-se com Alma (Michelle Williams) e Jack casa-se com Lureen (Anne Hathaway). O primeiro tem duas filhas e o segundo, igualmente casado, tem um filho. Nesse intervalo que separa os dois personagens, o espectador é apresentado à vida que cada um constrói para si, ao lado de suas esposas e filhos. Eles passam anos sem nenhum contato, até que Ennis recebe um postal de Jack avisando-o de sua passagem pela cidade e que deseja revê-lo, e dessa forma poderiam se reencontrar. Momentos de muita angústia e apreensão precedem o reencontro entre os cowboys, especialmente para Ennis que aguarda impacientemente a chegada de Jack enquanto bebe e procura se desvencilhar das perguntas que sua esposa o faz.
Quando Jack chega à casa de Ennis, somos apresentados a um Ennis que, pela primeira vez, deixa-se levar pela emoção e ignora as conseqüências trazidas por esta e atira-se feroz e intensamente nos braços de Jack, beijando-o, afagando-lhe e falando-lhe da imensa saudade que sentira durante todo o tempo que estiveram distantes. Nesse ponto o filme começa a alcançar a tensão e conflitos entre o relacionamento de Ennis e Jack. Este propõe a Ennis que ambos construam uma vida juntos e sejam felizes. Jack está altamente disposto a enfrentar tudo e todos para poder passar o resto de seus dias ao lado de Ennis, mas este, aterrorizado por uma lembrança de infância, recusa terminantemente a proposta de Jack. Ennis conta a Jack que quando criança, um homem suspeito de ser homossexual na cidade em que nascera foi torturado e morto; dessa forma, para Ennis, é totalmente fora de cogitação morar com outro homem.
Com o desenrolar da trama e os conflitos entre Jack e Ennis, percebemos o quão frágil o ser humano se torna diante do desespero, de não saber como lidar com uma situação nova e, socialmente falando, anormal e inaceitável, mas que o atormenta incessantemente. Para tentar compreender a situação vivida pelos dois amantes é só fazermos uma breve analogia, comparando a homossexualidade na atualidade com a da década de 60 a 80 nos E.U.A, tendo como agravante dois cowboys. Atualmente – mesmo em face de uma maior aceitação ao homossexualismo por parte da sociedade – ainda presenciamos constantes casos de discriminação e hostilidade em relação aos homossexuais, imaginem só naquela época!
Após esse reencontro entre os amantes, eles não mais se separam, continuam a manter os secretos encontros, mas com intervalos de tempo muito grandes, o que acaba por desgastar a relação, principalmente para Jack, disposto a largar tudo para viver com Ennis. Nessa vida dupla, na qual tanto Ennis quanto Jack transitam por entre o que realmente desejam e o que é socialmente aceito, ou seja, uma caminhada entre o querer e o dever, a “travessia” entre esses caminhos torna-se insustentável e Jack é o primeiro a dar sinais de cansaço e desespero, procurando por Ennis nos braços de outros homens. Tão dura, e igualmente, é essa situação para Ennis, que, ao contrário, de Jack internaliza toda a sua dor e angústia, sendo apenas visível esses sentimentos quando o olhamos atentamente. Ennis tem um olhar perdido e uma imensa tristeza que marca seu semblante sempre sério e praticamente imutável.
Quanto à vida conjugal tanto de Ennis quanto a de Jack é, digamos, triste; e pelo menos para Jack uma farsa, já que além de ser totalmente desprezado por seu sogro (um milionário empresário do ramo de equipamentos para o campo) Jack não “atua” como o homem da casa. Ao contrário, sua esposa Lureen é quem assume as funções que o homem deveria assumir; como cuidar dos negócios e equilibrar o orçamento deixando, pois, os cuidados do filho sob a responsabilidade de Jack. Quanto a Ennis, seu casamento sucumbe após uns cinco ou sete anos, e este passa a viver solitariamente e apenas tenta se envolver com uma outra mulher que não lhe desperta muito interesse.
Com todo esse fracasso na vida afetiva, e não podendo ficar juntos a vida das personagens, como menciona o próprio Jack, é uma doce e nostálgica lembrança do que viveram juntos na montanha Brokeback. Depois de mais uma despedida, Ennis diz a Jack que poderá revê-lo apenas em novembro (um intervalo em torno de 04 a 05 meses). Nas vésperas do reencontro de novembro, Ennis recebe de volta o postal que havia enviado para Jack lembrando-lhe do encontro de novembro. O postal contém um carimbo informando sobre o falecimento de Jack. Imediatamente Ennis entra em contato com Lureen, esposa de Jack, que o relata secamente sobre o ocorrido. As cenas que se sucedem a esse diálogo não as comentarei, pois somente vendo-as é possível compreender e sentir o que Ennis sentiu.
Como mencionei anteriormente, sobre a troca de socos entre Jack e Ennis na montanha Brokeback e o link que esta cena faz com a última, não posso deixar de comentá-la: depois de ir à casa dos pais de Jack para pegar alguns pertences de Jack, vemos Ennis morando em um trailer à beira da estrada. Após um diálogo com a filha, que viera visitá-lo contando-lhe sobre seu noivado, Ennis, taciturnamente, entra para o trailer (sua casa), abre a porta de seu guarda-roupa, vê as duas camisas que ele e Jack estavam usando no dia da briga na montanha penduradas na porta do guarda-roupa, uma camisa sobreposta à outra, ainda sujas de sangue. Nesse momento, Ennis acaricia as camisas, como que acariciando Jack, abotoa cuidadosamente um botão de uma delas e olha para um cartão postal com a foto da montanha Brokeback acima das duas camisas. Ele balbucia algumas palavras e lágrimas correm-lhe pelo rosto.
Enfim, penso humildemente que Brokeback não teve um público à altura da grandiosidade do tema nela tratada. Vemos simplesmente o amor que brota naturalmente entre duas pessoas e a cumplicidade que as une. Essa produção requer um olhar, uma atenção despida de todo e qualquer preconceito, ela requer simplesmente um olhar humano, pois o filme coloca o amor acima de sexualidade e o mostra de forma natural como duas pessoas se conhecem, se gostam e apaixonam-se e, nesse filme, o fato de ambas as personagens serem do mesmo sexo é apenas um mero detalhe. Não que eu esteja subestimando quem o assistiu, mas os comentários que eu já escutei sobre Brokeback são desoladores. Só como exemplo, lembro-me de ter escutado que Brokeback é uma aberração com dois cowboys boiolas. Sem contar as pessoas que saíram da sala de cinema xingando Deus e o diabo. Se você estiver disposto a assistir essa maravilhosa produção, só um conselho: assista-a despido de todos os valores preconceituosos e segregacionistas que permeiam a nossa sociedade.