Mais uma loucura de dois profissionais malucos do cinema. Goldry e Kauffman se juntam pela segunda vez, e o resultado acaba saindo melhor que a encomenda. Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças consegue divertir, confundir e até mesmo pirar o espectador, em ambos os sentidos.
Depois de Adaptação, há quem duvidasse da capacidade de Charlie Kauffman de surpreender o público mais uma vez com mais um de seus roteiros estranhos, mirabolantes e malucos. Eis então que surge “Eternal Sunshine of the Spotless Mind”, cuja história consegue ser mais original e absurda que todos os trabalhos anteriores do roteirista. Um filme especial, cativante assim como os seus personagens, reflexivo, onde tudo parece mais um pesadelo inacabável do que um longa-metragem de 108 minutos, ainda que isso não seja um ponto negativo. Enfim, já deu pra perceber que quando mencionei que o filme consegue pirar o espectador, não estava exagerando.
A sinopse parece ser muito simples. Mas pode apostar quanto quiser comigo que não é. Poderia ser só a história de um homem solitário, infeliz na sua vida amorosa, no seu trabalho, que conhece finalmente a que poderia ser a mulher de seus sonhos, com todos os atrativos que ele necessita para seguir com sua vida adiante. Até aí tudo perfeitamente normal. Mas é neste exato momento que nos lembramos da essência formal de Kauffman em meter sempre algo inesperado, absurdo e por que não dizer, original. E foi o que aconteceu. De uma hora para a outra, ele descobre que sua namorada, Clementine Kruczynski, decidiu apaga-lo de sua memória. Infeliz mais uma vez, ele decide fazer o mesmo, utilizando o mesmo processo que fora submetido à sua amada. Entretanto, quando está dentro de seu cérebro, revivendo todos os momentos que passara com ela no interior de suas memórias, ele luta contra si mesmo para que essas lembranças nunca sejam deletadas definitivamente.
ROTEIRO
"Clementine Kruczynski has had Joel Barish erased from her memory. Please never mention their relationship to her again. Thank you.”
‘Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças’ é um filme simplesmente inacreditável. A cada minuto que passa você se surpreende mais com os “trâmites” de Kauffman e sob uma óptica fantástica de surrealismo por parte de Michel Goldry na direção, a sensação de ver sua obra-prima é indescritível. Sensível, reflexivo, original, todos esses adjetivos são perceptíveis ao longo de todo o filme e nunca são exagerados ou utilizados de forma incorreta, muito pelo contrário. É tudo muito bem elaborado, montado e felizmente não é um filme de longa duração, mas não porque acabaria ficando arrastado, com cenas desnecessárias, mas sim porque o roteiro está tão perfeito do que jeito que foi finalizado, que um pouco mais estraga.
Neste ponto talvez encontramos um dos maiores trunfos do enredo de Kauffman. As cenas onde o absurdo, o irreal e o impossível dançam juntos têm a duração correta. Afinal de contas, quem, por mais fã de filmes do gênero que seja, agüentaria vários e derradeiros minutos vendo coisas confusas que só fazem te desgastar ainda mais? Goldry, roteirista assim como Kauffman, têm consciência disso e evitaram ao máximo estender tais cenas até encher definitivamente o saco.
Deixando de lado o roteiro vencedor do Oscar, é hora de falar e elogiar um pouco o elenco de “Eternal Sunshine”. Só que para isso, é necessária uma divisão, a fim de ter uma análise mais completa das personagens em questão, que não são muitas, mas de profundidade impressionante. Entretanto, antes de fazê-lo, vale ressaltar que poucas vezes se vê um elenco tão bom reunido em um mesmo filme. Não só o sensível Jim Carrey surpreende, mas Kate Winslet interpreta de forma brilhante mais uma vez e Tom Wilkinson, Kirsten Dunst, Mark Ruffalo, Elijah Woods, todos participam e marcam presença constante, em atuações magníficas. Uma melhor que a outra, por sinal.
Bom, a divisão começa com Joel Barish, interpretado por Carrey.
ATUAÇÕES
Jim Carrey como Joel Barish, desiquilibrado apaixonado.
Acho que não existe um único ser humano, em plena consciência de sua desastrosa vida amorosa, que não tenha sentido a sensação de solidão, tristeza e baixo-astral quando está às vésperas do Dia dos Namorados, aqui comemorado em Junho, nos Estados Unidos em Fevereiro. Joel Barish é um desses que após terminar um relacionamento, sente-se como se ele mesmo fosse a única pessoa que se importasse consigo mesmo. Barish é um personagem simples e esperançoso e Jim Carrey realmente captou a “aura” de seu papel de uma maneira tão simples quanto. Sua atuação é cheia de vida, criativa e pode parecer estranho, mas as suas caretas (como evita-las?) também estão presentes, com um diferencial. Elas não são expressas pra fazer as pessoas rirem, muito pelo contrário. Das poucas vezes que vemos ele contorcer o rosto, ou é por um motivo extremamente triste, ou por uma situação tão absurda, que de engraçada não tem nada. Carrey recebeu uma indicação ao Globo de Ouro de Melhor Ator em Comédia/Musical e este papel é considerado por ele mesmo, um dos mais difíceis de ser interpretado dentro os vários de toda a sua carreira bem sucedida, porém carente de prêmios.
Jim Carrey prova ser capaz de surpreender o espectador. Seu lado sensível deixou transparecer um outro lado de seu talento, que antes era todo voltado para comédias descaradas e descompromissadas, agora se mostra um ator mais sério e um tantinho mais completo, capaz de algumas nuances interessantes. Esse lado mais dramático de sua personalidade deveria ser mais explorado, quem sabe garantindo-lhe outra fama e muito possivelmente, um prêmio futuro, como o Oscar, que ele tanto almeja.
Kate Winslet como Clementine Kruczynski, única e exclusiva.
In a cavern, in a canyon
Excavating for a mine
Lived a miner forty-niner
And his daughter, Clementine
Oh, my darling, oh, my darling
Oh, my darling Clementine
You are lost and gone forever
Dreadful sorry, Clementine.
Uma das melhores atrizes em ação na atualidade, Kate Winslet cansou tanto de provar o seu talento que a Academia finalmente resolveu premia-la com o Oscar de Melhor Atriz esse ano por O Leitor. Embora o papel da ex-guarda nazista não tenha sido o melhor de sua carreira, ela certamente convence e garante ao público um verdadeiro show de atuação. Mas é pra isso que servem os bons atores, para serem comparados uns aos outros, agora falando com ironia, embora alguns sejam isentos de quaisquer comparações acerca de seu talento a fim de comprovar o do outro. Mas permitam-me fazer uma comparação entre trabalhos de um mesmo ator, no caso a atriz Kate Winslet. É impressionante observar a carreira de um artista em decolagem e depois de anos, parar e ver o quanto ele amadureceu e quantos trabalhos e papéis diferentes ele fez em toda a sua carreira. Existem aqueles que fazem somente um tipo de personagem, e fazem direito e existem aqueles que fazem todo o tipo de personagem, e também fazem bem feito. Podemos incluir Kate definitivamente nessa segunda categoria.
Acontece que é mais que perceptível o nível ao qual chegou Kate Winslet. Desde seu auge em 1997, com Titanic, ela só vem tendo bons papeis e um de seus melhores encontra-se em “Eternal Sunshine of the Spotless Mind”. Ela interpreta de maneira tão significante, carismática e comovente a personagem Clementine Kruczynski. Mulher solteira que possui estilo próprio, gostos diferentes, um jeito esquisito, mas extremamente carismático. Ela que pinta seus cabelos na cor de Green Revolution ou Yellow Fever e muda constantemente, aparenta ter um jeito agressivo, mas no fundo pode ser um doce de pessoa.
DIREÇÃO
É apenas o segundo trabalho de Michel Goldry e esse pode ser considerado até agora, a obra-prima de sua vida. Não há muito que dizer dele, a não ser da sua parceria pra lá de bem sucedida com Charlie Kauffman, com quem também escreve o roteiro do filme. Goldry é competente o bastante pra não deixar que o surrealismo passe do ponto exato e tome conta de um filme cuja base é a sensibilidade e por que não, a oportunidade de poder, literalmente, apagar o passado de sua cabeça. Esse é o grande mérito de mais uma maluquice descabida vinda dos dois, uma base dramática sólida e bem argumentada, que não faz o filme se perder em atos desnecessários e arrastados.
Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças é mais um excelente filme escrito por Kauffman, cujo roteiro é a principal atração. E quando se trata de uma parceria de Goldry e do roteirista Charlie, nunca se sabe o que esperar, pois sempre virá uma surpresa e uma história surreal e absurda (repare que as duas palavras são usadas repetidas vezes nesse comentário) por trás de muita criatividade e inteligência. Apesar de ser capazes de surpresas inimagináveis, podemos esperar deles pelo menos duas coisas: uma loucura (como de praxe) e um ótimo filme.
”Feliz é a inocente vestal!
Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida.
Brilho eterno de uma mente sem lembranças
Toda prece é ouvida, toda graça se alcança.”
Poema "Eloisa to Abelard” de Alexander Pope