“você não quer a verdade, cria a sua própia(...) um quebra-cabeça que você nuca solucionará.”
Em 1999, duas produções de baixíssimo orçamento conseguiram excelentes bilheterias e caíram na graças de uns, tornando-se ícones cult da época: Sexto de Sentido, do Diretor estreante M. Night Shiamalan e a Bruxa de Blair. O que acabou por deixar certa expectativa sobre qual seria o próximo filme a repetir essa façanha lá na terra do Tio Sam: filme independente que surpreendesse aos grandes estúdios e aplacasse uma boa bilheteria, só que mais que isso, esse filme precisaria ser algo que fizesse o espectador pensar o tempo todo, um filme que acima de tudo fizesse com que as pessoas queimassem vários neurônios para acompanhá-lo, e eis que surge Memento (Amnésia) de um diretor recém chegado no circuito comercial: Cristopher Nolan.
O grande trunfo de Nolan foi ter conseguido fazer com que uma trama aparentemente simples fosse tão brilhantemente contada devido ao fluxo de narrativa invertido. Cada ação do protagonista é mostrada sem que se saiba o motivo que o levou aquela situação. Uma cena termina onde a antecessora começou. Com isso, a cada cena, desvenda-se um mistério e cria-se outro. Enquanto vamos regredindo na história, vamos conhecendo as pessoas que interagem com o protagonista, em um primeiro momento reputando-lhes confiança, todavia, logo em seguida, com uma nova cena descobrimos uma outra intenção dessa pessoa para com o protagonista que coloca-nos em posição de cheque quanto ao seu caráter.
A história trata de Leonard Shelby, ou Lenny( Guy Pearce de Los Angeles - Cidade Proibida, Conde de Monte Cristo e Máquina do Tempo) um homem que, impulsionado pelo desejo de vingança, tenta descobrir quem estuprou e matou sua esposa Catherine, todavia, sua “condição” (perda de memória recente, causada pelo assassino na hora em que ele Leonard, tentava salvar sua esposa) não o permite memorizar o que aconteceu naquela fatídica noite, dificultando sua investigação. Em sua busca, surgem algumas pessoas com o suposto intuito de ajudá-lo, mas que na verdade agem em benefício próprio, tentando ao seu modo, tirar proveito da situação: Natalie, habilmente interpretada pela bela Carrie-Anne Moss( de Chocolate e da Trilogia de Matrix), é namorada de Jimmy Grantz, traficante que também está envolvido nos recentes acontecimentos da vida de Leonard; Teddy(Joe Pantoliano de Imério do Sol e Matrix)diz ser um detetive encarregado do caso e tenta ajuda-lo informalmente.
Diante de sua falta de memória, Leonard estruturar-se-á, através da rotina, seu condicionamento, de modo a seguir seus objetivos, mas vive sem eixos ao qual se apoiar: ele apóia-se em suas fantasias, pistas criadas por ele próprio, lembranças incertas, notas que foram rasuradas por ele próprio sob influência da daqueles que supostamente queriam o ajudar, tudo isso, como forma a criar sua realidade e assegurar um modo de convívio consigo mesmo. Nessa busca insana por vingança, Leonard criará as pistas que lhe convier, um enigma inacabável. O detetive Teddy mente, mente assim como também o fazem os outros, mas não sabemos até que ponto, todavia parece ser ele o que tem um maior compromisso com a verdade em sua revelação final, quando ele afirma que Leonard já havia matado o suposto assassino de Catherine, sua esposa. Leonard vangloriar-se-á do método que utiliza para achar o assassino de sua esposa, baseando-se apenas nos “fatos” e “fontes”, já que a memória sua e dos outros é “traiçoeira”, ao mesmo tempo em que cria esses fatos, como a placa do carro do assassino, que ele inventa, conscientemente, e depois não se lembra que é uma invenção. Estruturando sua vida, mimetizando os “fatos” ele acredita que conseguirá o condicionamento que Sammy Jankis (um homem investigado por Leonard – que antes da perda de memória era trabalhava em uma empresa de seguros- e que também teria tido um problema de memória como o seu): “Hábito e rotina tornam minha vida possível. Eu tenho um motivo. Sammy não. Ele deveria aprender por meio da repetição.”
A Direção de Nolan, seu Roteiro baseado no livro homônimo de seu irmão Jonathan, aliado a espetacular Montagem empreendida por Dody Dorn( será o Montador de Austrália, o foi de Exterminador do Futuro 2, Insônia e os Vigaristas) nos levará através desse labirinto que se tornou a vida de Leonard, recorrendo a cenas em preto-e-branco para diferenciar os tempos da narrativa, confundindo o espectador: tais cenas são intercaladas com outras em cores e mostram os momentos que antecedem o assassinato do traficante Jimmy Grantz, por Leonard, quando este estava em um quarto de hotel, fazendo tatuagens que seriam sua mimetizes seus memoriais dos “fatos”, e conversa por telefone com alguém, sobre sua história.
Perto do fim, as imagens em cores (que mostram os acontecimentos de trás pra frente) vão encontrando as em preto-e-branco (que obedecem a uma seqüência temporal). Na última cena em preto-e-branco, Leonard sai do quarto para encontra o pessoal Teddy no saguão do hotel em que estava ( que ao que parece era com quem ele conversava ao telefone) tira uma foto dele e recebe um endereço, indo depois a uma casa abandonada onde baseando-se em seus fatos, encontrará e matará Jimmy Grantz. Essa cena vai então se colorindo e dando lugar à última cena, que na verdade é a primeira da história, pois é nela que começa o filme.
Nolan vai lançando ao longo da trama elementos que deixam mais embaralhados ainda à trama. Há certo significado simbólico no fato de na casa abandonada, o piso esteja desfalcado de alguns azulejos, assim como no arquivo de Leonard estar faltando páginas. A alguns indícios que nos levam até a crer que a esposa de Leonard tinha algum envolvimento com o traficante, e que a casa abandonada onde o protagonista mata Jimmy é sua antiga casa. Explico: há uma cena em que Leonard vai entrando pela porta enquanto surgem cenas em cor da esposa andando pela casa, em seguida, Leonard fica diante de uma porta e novamente surge a imagem da esposa diante de uma porta idêntica a de Leonard. Em outro trecho, quando Leonard está prestes a matar o traficante e este lhe oferece dinheiro em troca da vida, aquele diz que não quer seu dinheiro. Jimmy então pergunta: “O quê então? O que quer de mim?” “Minha vida de volta”, responde Leonard. Durante esse diálogo, aparece uma ligeira cena colorida de mulher virando-se sentada em uma cadeira, a voz deles aparenta vir de um outro cômodo ao lado de onde estava sentada a mulher. Já em outra parte, Nathalie indica Leonard uma casa abandonada “onde um amigo fazia grandes negócios”.
Outro ponto interessante que se faz presente em Amnésia é posto em cheque à objetividade das provas de Leonard, como nos mostra os aparelhos usados por ele. As fotos tiradas por ele em sua Polaroid, não são nada objetivas: Natalie aparece distante e ensombrecida, quase irreconhecível; Teddy diz está mais magro em sua foto; a foto que teria sido tirada na hora em que Leonard teria matado o assassino da esposa não garante de forma alguma se teria sido realmente ele. Por outro lado, o que ele escreve nas fotografias também o é bastante subjetivo, assim como as tatuagens espalhadas pelo seu corpo, todos esses mimetizes escritos em momentos ambíguos, sob clara influência daqueles que desejam o ajudar em beneficio próprio.
A grande qualidade de Guy Pearce fez com que ele se encaixasse muito bem no papel de Leonard, soube retratar com brilhantismo toda a angústia do personagem. Carrie-Anne Moss está com o sarcasmo suficiente para sua personagem, sua interpretação em Amnésia chega a superar toda sua segurança demonstrada no antológico Matrix. Pantoliano está muito bem sobre aquele bigode ridículo (rsrsrs), mostra ser um bom ator coadjuvante, é dinâmico, ágil e encara bem seu personagem. Entre os outros coadjuvantes, Callum Keith Rennie(eXistenZ e Blade Trinity), como Dodd é o de menor destaque, o que se explica por seu papel. Destaque-se, por outro lado, a ótima interpretação de Harriet Sansom Harris, como a esposa de Sammy Jankis, muito segura em cenas emotivas, passando de maneira concisa emoção e nos comovendo com suas atitudes diante do problema de seu esposo.
Amnésia foi ao Oscar de 2002 concorrendo a duas categorias que soaram até obvias diante da qualidade demonstrada: Roteiro Original e Edição, não levaram nenhuma, para o primeiro, diante da concorrência, que também o eram de qualidade, acredito que foi injusto, no segundo até vá lá, a disputa era muito acirrada. Todavia, acredito que Anne Moss deveria estar entre as concorrentes a Atriz Coadjuvante.
A tradução do seu titulo para o português acabou destoando, de certa forma, o sentido real que teria a obra. Seria algo mais próximo de “memorando”, ou melhor, seria mais positivo manter o título em Inglês!!
Amnésia serviu não apenas para mostrar o quão talentoso era esse tal de Cristopher Nolan que estava chegando, serviu pra mostrar que ainda hoje em dia dá pra fazer cinema de qualidade, inteligente, inovador, que faz pensar, que o faz ter prazer em assisti-lo duas vezes seguidas. Um início brilhante de Nolan, o grande Diretor que tirou Batman das cinzas. Um diretor de talento, um dos grandes nomes da atual geração. Como bom fã de Kubrick, Nolan faz de seu Amnésia uma Quimera de proporção semelhante em dificuldade de entender, em encantamento a 2001- Uma Odisséia no Espaço do grande mestre, embora em sentido e estilo diferente. Amnésia atinge o status de obra-prima dos últimos dez anos, e reafirma a capacidade de se criar bons filmes com baixo orçamento (parcos 5 milhões de dólares), sem dúvidas um boa e grata surpresa, uma grande sensação de prazer, que o faz creditar o sentido de “arte” que é imputado ao cinema.