O filme de máfia ou gângster é um dos gêneros mais propriamente estadunidenses do cinema. São filmes, geralmente, que refletem sobre alguns momentos da história urbana do país – e sobre como uma conjuntura econômica e política pode influenciar nos limites morais dos que habitam as suas cidades. É um gênero que fala de uma violência muito incorporada na desigualdade da grande cidade moderna nos EUA e das masculinidades que essa violência constrói.
O Irlandês (The Irishman, 2019), novo filme de Martin Scorsese, parece estar às voltas de uma despedida para esse gênero. Lógico, não é possível realmente realizar uma conclusão desse tipo (certamente, continuaremos a ver filmes de gângster, vários deles), mas O Irlandês se coloca muito prontamente diante da possibilidade desse fim: a de que os mafiosos, quando têm sorte, envelhecem e de que o mundo que eles criaram para eles mesmos (um mundo em que são poderosos chefões) já não será um mundo a que eles pertencem.
O principal ponto de O Irlandês me parece ser essa autorreflexão sobre o gênero (os seus temas, a sua estética, os seus personagens e os seus valores). Isso já parte do modo como a história nos é apresentada. Frank Sheeran (Robert De Niro), velho, sozinho no que aparenta ser um asilo, narra a trama da sua relação com a máfia da Filadélfia e o sindicato de caminhoneiros, personificados pelas lideranças de Russell Bufalino (Joe Pesci) e Jimmy Hoffa (Al Pacino), respectivamente. Esse gesto de narrar a própria história, que é do personagem, parece repetir a própria lógica autoral do filme, no que Scorsese assume a posição aqui de filmar a própria obra, refletindo sobre trabalhos tão diversos quanto Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990), Cassino (Casino, 1995) e Os Infiltrados (The Departed, 2006).
O filme não copia referências da filmografia do diretor, mas lança um olhar atento para o arquivo desse gênero (que o cinema de Scorsese ajudou a perpetuar), colocando em cena algumas questões latentes desse arquivo que, acredito, nunca foram propriamente pronunciadas em sua obra. A primeira delas, e mais notável, é a questão relativa ao envelhecimento e morte dos personagens, uma dúvida que, posta em cena, rompe com o dilema entre a redenção e a punição que justifica tantos filmes do gênero.
Para além da punição e redenção, os personagens de O Irlandês envelhecem. E, para que possamos ter uma dimensão mais visível do que isso significa, recorre-se a efeitos especiais para rejuvenescer os atores principais, Robert De Niro, Joe Pesci e Al Pacino. O que me parece mais interessante, no entanto, não é a recuperação de uma outra imagem dos atores (uma imagem muito cara a esse arquivo do gênero, como não é por acaso que essa técnica é aplicada especificamente a esses atores, que são parte de um cânone do filme de máfia estadunidense), mas como a juventude desses personagens é encenada por esses atores mais velhos. Isso reitera uma qualidade de reminiscência do filme – uma reminiscência desse personagem que nos conta sua história tanto quanto uma reminiscência do filme de gângster que é articulada por Scorsese.
Evidentemente, Scorsese não articula isso sozinho. Há um exercício de muita precisão e cuidado no modo como essa história é contada, em cada detalhe que é apresentado e em cada composição visual que reaparece durante o filme. A montagem de Thelma Schoonmaker e o roteiro de Steven Zaillian dão conta de tecer, junto com Scorsese, essa intriga de 3 horas e 20 minutos, justificando cada pequeno momento dessa longa duração. É nessa teia fílmica que se dá a atividade de recordação do personagem e do filme, é nela que se constrói esse mundo masculino (em que as mulheres estão não ausentes, mas à distância), que, contemplado como lembrança, revela um custo antes não previsto. Agora sozinho, o mundo tão repleto de personagens de Frank Sheeran foi reduzido ao seu quarto no asilo e se sustenta apenas na continuidade da máquina que conta a sua história – podendo desaparecer meramente na transição de um frame para o próximo.
Quanto aos planos do Birdman aquilo acaba por funcionar como a lógica corrida do teatro, onde sempre se corre pelos bastidores, e é este o significado daquela câmera. Sempre em movimento, ativa, tal qual um teatro pulsante.
Eu gosto muito de Birdman mas ainda acho que o filme INTEIRO em plano-sequência, principalmente o terceiro ato, não se justifica. Tivesse tio Alejandro pesado um pouco menos a mão neste sentido, acredito que Birdman poderia (com o perdão do trocadilho) alçar voos mais altos. Mas ratifico que gosto muito do filme, apenas citei-o como contraste a O Irlandês, que tem na minha opinião usa a técnica de modo mais preciso. Até mesmo o trabalho de tio Alejandro em The Revenant acho bem melhor que em Birdman.
E é muito bom ver alguém dando o devido valor a Gangues, que antes de The Irishman era o melhor trabalho de Scorsese desde Goodfellas. Épico visceral.
Gostei do filme mas vou deixar aqui a opinião que ouvi no podcast a seguir, de "Os Náufragos", para quem tiver paciência de ouvir:
Podcast #96 - Confissão Humilhante
https://open.spotify.com/episode/4gn0Og9i4mEMg8m4oRHHRp?si=3BQl_qxKQlK3v6x7P7yImA