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Artigos

Vlad Tepes, o terrível Nosferatu

Do Empalador ao Vampiro. A história do ímpio sanguessuga mais estraçalhador.

Quem diabos é o Nosferatu? Um demônio a vagar pelos Cárpatos, certeza. A concepção de um dos mais importantes personagens do cinema. Copiado, adaptado, chupinhado, falsificado e avacalhado. Baseado num príncipe romeno do século XV. Como uma figura histórica se metamorfoseia em mito/monstro? O guerreiro torturador que vira vampiro. A gênese vampiresca moderna em Bram Stoker e sua masterpiece, Drácula. Porque o vampiro é fascinante? A leitura monstruosa de Nosferatu adaptada, três vezes. Criando tríade de fitas própria, com objetivos e propostas diferentes, mas com mote por dentro: a importância de seu personagem principal no gênero do terror. Do caráter trágico à sua alcunha de praga absoluta, passando pelo metalinguístico. A Fera morre pela Bela?

Vlad III, Vlad Draculea, Vlad Tepes, Vlad, O Empalador (1431–1477). Este figura é quem inspirou Stoker a delinear sua própria criatura. Príncipe da Valáquia, província que toma todo o Sul da Romênia. Ao sul dos Cárpatos. Serviu à Igreja Ortodoxa contra o crescimento islâmico dos turcos no Império Otomano, resistindo a este gigantesco poder por algum tempo. Caminho marcado pela violência. Quando em combate e vitória, empalava seus inimigos. Para quem não sacou que negócio é este, basta imaginar como seria a introdução de uma estaca no orifício anal de maneira devagar e contínua até que este objeto grosso de madeira percorra e rasgue os órgãos internos até a morte. Martírio que durava de horas a dias, dependendo do estilo de penetração escolhido. Um dos prováveis motivos da escolha autoral ao adaptar este personagem real para a literatura. Peça humana conflitante na Romênia, perambulava tanto para o lado dos turcos quanto dos húngaros, inimigos e aliados em disputa nos conflitos da Europa Oriental, sempre buscando estabelecer o seu poder na Valáquia. Como um morcegão nalguma busca de expiação social quando se está na escuridão.

Filho do Vlad II, que era membro da Ordem do Dragão, organização cavalheiresca nobre de combate, acabaria conhecido como Vlad Dracul. Então o filho, Vlad Tepes, em homenagem ao pai passou a usar o nome Vlad Draculea, que significa filho do dragão, ou do diabo, algo que encaixa perfeitamente na sua mania de enfiar madeira nos outros. Esta figura histórica tem a violência como mote, somando-se lampejos de genialidade em combate e aspectos tradicionais que sua poranduba é perpassada. Tendo ficado no poder por pouco tempo (1448; 1456-1462; 1476), mas resistindo a ataques em prol da Valáquia e crescendo na história daquelas paragens. A eterna disputa territorial que o ser humano continua teimando é vista na vida inteira deste cara. Tanto que o encaixe junto ao vampirismo é até funcional e esperto. Luta pela terra. Característica humana herdada em Drácula é a terra sagrada, porém esse bicho se alimenta do sangue à procura de sua amada. O vampiro depende da terra em que foi enterrado para se fortalecer. Herda maldições. Sangue ao poder. A terra.

Para sacar melhor a transmutação de Vlad Tepes, de alteza palaciana e chefe de exército a vampiro, como mala que sou, vou recorrer à obra “Invenção das Tradições”, organizada pelo grande historiador Eric Hobsbawm e por Terence Ranger. Como fala Hobsbawm, como surgem as tradições? Nas invenções? Através da repetição de elementos e valores sobre determinadas situações, vinculadas a fatos e indivíduos e na forma como são transmitidos. Essa repetição é uma das chaves mestras dessa questão. Assim como suas ligações históricas com o passado. Com o Empalador, o padrão persiste. Pela história e, a posteriori, pela literatura e pelo cinema. Relação entre a continuidade real/artificial diante dum passado. Por que real? Por lidar com passado existente ante ações e versões em disputas históricas, tais quais muitos romenos estariam a defender. E artificial? Por conta da transformação dele em vampiro. Anormal. Monstro. Ambas visões cheias de metáforas, porém uma já abertamente agarrada ao sobrenatural. A ruptura histórica? Tepes de príncipe a sanguinário. Defensor da Romênia. Oferta e demanda das tradições.

Após sua morte, os romenos o idolatraram como defensor heroico que os livrou, momentaneamente, do Islão com sagacidade e ferocidade, não negando seu caráter alcunhado ao empalamento. Além dos naturais da Valáquia e afins, havia os russos, que mantinham explanações, poemas e estórias a favor desse príncipe mofento. Hungria e turcos contra ele. A luta das narrativas, algo conhecido na história e na política que se mantém cada vez mais modernosa. Depois de certo tempo, as narrativas sobre Tepes se mantiveram sem ascensão e numa esfera mais localizada, e, para o âmbito das tradições, sempre se exigem ofertas e demandas para a sobrevivência dos mitos. A oferta crescera exponencialmente na mitificação vampírica do Draculea romeno. Bram Stoker ajudou a popularizar e a por novos olhares sobre o Conde Vlad III. Originalidade numa tradição através da metamorfose. Funcional nas ciências humanas e nas artes, na qual, a citada literatura. Necessidade dum passado histórico para a invenção de nova tradição. Drácula une os dois mundos, o apego pelo sinistro horrorífico sobrenatural à questão histórica tácita com narrativas incríveis baseadas em fatos e acontecimentos de raízes plenas.

Estas questões são absolutamente relevantes às criações dos mitos modernos, ou numa recauchutagem mais diabólica. O passado existente e humano traz tom perigoso real e uma herança maldita. Cria empatia da criatura junto ao humano. Sem este background escroto fornecido por Tepes e suas narrativas, talvez fosse só mais uma besta solta. Da forma como ficou, temos um Drácula/Nosferatu problemático, tridimensional, atormentado por condição existencial não escolhida, mas, sim, vivido pela obrigatoriedade da sobrevivência. Isolado e amaldiçoado. Nessa condição ele continua até seu desfecho trágico, no qual, ao invés de comemorarmos a extinção de tão atroz besta, acabamos por nos consternar, pois, mesmo sendo uma praga, ela é miseravelmente solitária e absorta em sua permanência no mundo dos vivos. 

As adaptações que o texto aqui referenda se projetam no modo como a primeira foi feita, em 1922, com leitura própria, proibida, visual arrebatador e fiel ao livro; a seguir, uma refilmagem cruel, trágica e escrota; e, por fim, uma nova versão metalinguística. Algo em comum acordo nas três é o qualitativo na cenografia pungente e, principalmente, nas atuações absurdas dos seus intérpretes, que nos propicia três personificações num horror abusivo e clássico, atmosférico e primordial. A versão desta tríade é de um bicho vampiro feioso, e não do galante Drácula que tornar-se-ia dali em diante. Ainda assim, o bruto sem perder ainda sua natureza enigmática e sinistra, assim conservando o seu atrativo.

Dois colegas críticos também fãs do horror deixarão uma amostra de sua sapiência acerca destas obras. São mais três críticas escritas. O primeiro Nosferatu (1922), F. W. Murnau, é o meu. O comparsa Pedro Lubschinski traz um material sobre a estupenda obra Nosferatu: O Vampiro da Noite (1979), do Werner Herzog. E o meu chapa Francisco Bandeira aponta elementos materiais e imateriais no trabalho metalinguístico de A Sombra do Vampiro (2000), de E. Elias MerhigeQue se saliente que as críticas completas desses caras estão linkadas logo abaixo, no título de cada síntese.


Nosferatu (1922)

A desgraça. Obra seminal do terror adaptando, de forma não autorizada, a estória do Conde Drácula. A mais clássica vampiresca, e das mais pungentes do horror. No alto do 1922, dentro da seara expressionista alemã no cinema mudo, cria-se obra arrebatadora no seu visual com fenomenal personagem título que assombraria gerações nas mais diversas adaptações, onde poucas conseguiriam o tamanho dessa personificação dada ao putrefato ser como nesse material dirigido por F. W. Murnau. Revolucionário. Filme sobre certa praga. Um preto e branco sobre a peste negra, ruim até o talo, mas que ao fim demonstra camadas cinzas inesperadas e humanas demais. O pútrido corporificado. Tenebroso e trágico. Temos na figura do Nosferatu, monstruosidade escrota, mas somado a arcabouço sentimental surpreendente atrelado a ele. Algo caro ao romance do Bram Stoker. Figura absolutamente aterrorizante, e alquebrada pela expiação.

Ted Rafael

Nosferatu: O Vampiro da Noite (1979)

O Conde Drácula de Werner Herzog, encarnado por seu melhor inimigo Klaus Kinski, é uma figura atormentada — e qual personagem herzogiano, não é? , que atravessa séculos de frustração com a impossibilidade de confrontar a inevitabilidade da morte, o que torna tudo ao seu redor apenas partes de uma existência fútil e vazia, na qual amor lhe é negado e cada dia vivo é pior do que estar morto. A criatura aqui não possui o charme de Béla Lugosi ou Christopher Lee, menos ainda é uma imagem que provoca o medo inspirado por Max Schreck no filme de Murnau — o que levou muitos a pensar ser o ator realmente um vampiro. O Drácula desse Nosferatu é uma figura que, em seus olhos que jamais piscam, nem ao menos tenta esconder o sofrimento que enfrenta quando parece, em dois momentos distintos, desabafar com Jonathan e Lucy (Bruno Ganz e Isabelle Adjani, respectivamente). Olhos que não piscam, tal qual os do espectador ao, admirado, ver tudo de que é capaz o ator-fetiche de Herzog em seu melhor momento.

Pedro H. S. Lubschinski

A Sombra do Vampiro (2000)

Ciente de que todo o mito de Max ser um vampiro vem da obsessão do ator, que muitas vezes incorporava o personagem mesmo longe das câmeras, o roteiro consegue ter boas sacadas. Por exemplo, ao se apoiar nessa mitologia e conseguir mesclar um tom mais realista com algo fantasioso, dialogando diretamente com o público e mostrando todo o processo de produção de um filme o que instiga um excelente debate sobre os limites da arte, a grandiosidade de um artista e os mitos que se criam nos bastidores de obras consagradas como Nosferatu (1922).

Francisco Bandeira


Cara aos chupadores de sangue esbranquiçados é a questão da terra. Algo tradicional e tácito. Mais que tradição, bairrista até. A força viria da areia de casa. Elementar, prática, como espaço de poder. Ora, os humanos têm a prerrogativa de lidar com o território como propriedade desde, no mínimo, a revolução neolítica – de 10 a 12.000 anos atrás. A luta pela subsistência por meio daquilo que a terra poderia lhe oferecer, e isso, das principais causas, quiçá a maior, dos conflitos humanos. Desde a necessidade de se criar um estado mínimo que fosse para lidar com a delimitação das terras, passando pelos mais diversos períodos e fases históricas, até a era do medievo por meio dos romenos resistindo ao Império Otomano. O parasita precisa do torrão natal arenoso por questão biológica funcional e ficcional. O homem precisa dela para, primeiro, sobreviver. Em segundo e em consequência, se possível, para sobrepujar o próximo. Se Tepes lutava contra a invasão de suas terras, Nosferatu a usa para sugar sangue e espalhar desgraça. Parte da herança humana seria a condicionante ao comprar terra na cidade onde se pretende ir. Assim teria alimento em abundância, se livrando um pouco de sua solidão, porém a existência da sua amada o transforma e o cega, o que acaba por corroborar seus finalmentes de forma incendiária.

A complexidade desta figura tem influência sem precedentes no horror. A humanização desse anormal é revolucionária em temática e narrativa. Nos põe ao lado do monstro. O consterna à nossa realidade. Independentemente de ele ser uma aberração escabrosa e uma praga, uma peste bubônica personificada, e um morto vivo imortal, ele vem a perecer por conta de emoções comuns humanas. Esse é um dos motivos pelo qual seu apelo é tão proeminente. Unindo isto ao horror proporcionado por um mal impiedoso e sacrílego que existe pela profanidade do morto vivo antinatural que exige o sangue. O sangue que é tão importante nas religiões ocidentais, como na Igreja Católica em que o sangue do Cristo tem simbologia de crença e salvação pesadas, temos no Nosferatu o contraditório da questão.

Vlad Tepes era adepto da Igreja Ortodoxa, que tem este Jesus como profeta e salvador e toda a questão de sangue atrelada. Ou seja, são relações irônicas, o sangue dele usado como salvação e a figura crente de Tepes ser usada como profanidade do sangue em Drácula. Como alimento para um diabo. Sem contar também com o sangue derramado pelas Igrejas Católica e Romana, e pelo Islão. Mas aí já é outra conversa. Tudo isso aponta para uma criação complexa que enseja os mais diversos debates, e é nisso que se montam as tradições. Vlad III saiu da vida, entrou nos poemas clássicos e na oralidade, cooptado pela literatura o fora e assim o Drácula/Nosferatu complementa tudo isso compondo capítulo especial de permanência histórica com seu legado herege, de terra, de realeza, pagão, cruel, bárbaro, de praga, guerreiro, empalador, sanguessuga e no esculhambatório. Do jeito que o diabo gosta.

Texto integrante do Especial Nosferatu

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