Muito mais que apenas uma refilmagem do clássico filme do expressionismo alemão dirigido por F. W. Murnau no começo da década de 1920, Nosferatu – O Vampiro da Noite é um filme com alma própria. Obra que exala a todo instante o cinema de seu realizador, Werner Herzog, transformando o romance gótico de Bram Stoker e seu antológico personagem, talvez o mais famoso dos monstros clássicos, em uma narrativa sobre coisas muito mais terríveis que a morte nas mãos de uma criatura apavorante.
O Conde Drácula de Herzog, encarnado por seu melhor inimigo Klaus Kinski, é uma figura atormentada — e qual personagem herzogiano, não é? — que atravessa séculos de frustração devido à impossibilidade de confrontar a inevitabilidade da morte, o que torna tudo ao seu redor apenas partes de uma existência fútil e vazia, na qual amor lhe é negado e cada dia vivo é pior do que estar morto. A criatura aqui não possui o charme de Béla Lugosi ou Christopher Lee, menos ainda é uma imagem que provoca o medo inspirado por Max Schreck no filme de Murnau, o que levou muitos a pensarem ser o ator realmente um vampiro. O Drácula desse Nosferatu é uma figura que, em seus olhos que jamais piscam, nem ao menos tenta esconder o sofrimento que enfrenta quando parece, em dois momentos distintos, desabafar com Jonathan e Lucy (Bruno Ganz e Isabelle Adjani, respectivamente). Olhos que não piscam, tal qual os do espectador ao, admirado, ver tudo de que é capaz o ator-fetiche de Herzog em seu melhor momento.
A cena em que o Conde invade lentamente o quarto de Lucy enquanto a moça arruma os cabelos e se olha no espelho, que traz apenas a porta se abrindo e uma sombra se aproximando sem revelar o aspecto físico da criatura até que ela esteja ao seu lado, representa bem o sentimento de se assistir a Nosferatu: ainda que Kinski tenha poucos minutos de tela, sua presença e o mau presságio que acompanha seu personagem parece estar sempre no quadro.
Mas é Adjani e sua virginal Lucy a verdadeira protagonista do filme. A mocinha da história de Drácula nunca teve tanta força como nas mãos de Herzog (que, ironicamente, sempre pareceu interessado em figuras masculinas). A imagem dela confrontando o personagem de Kinski na cena acima, por exemplo, é muito reveladora: com olhares e palavras decididas, sem desespero ou medo na voz, a garota se revela a figura dominante da situação — que traz o Conde mendigando seu amor com chantagens emocionais que em nada abalam a postura da personagem, que o expulsa e o apavora ao revelar o crucifixo em seu pescoço que tanto desejo desperta no monstro. Muita força possui também os momentos próximos ao clímax, que trazem Lucy como muito mais do que uma metáfora sobre repressão sexual a ser analisada em suas vestimentas brancas e gemidos enquanto é penetrada pelos dentes de Drácula. A personagem de Adjani, quase como uma personagem shyamalaniana, é a mulher que acredita em uma fábula aterrorizante e, munida de sua crença, enfrenta sozinha o mal que assola sua cidade enquanto o homem da racionalidade segue sem entender o que ocorre, sendo pouco além de um inútil.
As imagens de Herzog são também muito fortes. O cineasta alemão domina como poucos o poder do cinema como imagens em movimento que contam uma história e cria momentos inesquecíveis que, honrando a tradição do Nosferatu de 1922, não precisam de diálogos para impactar. Seja o plano por trás que acompanha Lucy e Jonathan andando pela praia onde se apaixonaram e que será revisitado em planos similares dos dois andando sozinhos, afastados para sempre pela viagem do rapaz à Transilvânia de Drácula, ou nos momentos desoladores que trazem Weismar infestada pelos milhares de ratos (milhares de ratos reais! Como poderíamos esperar de um maluco como Herzog) que espalham a mortal peste negra e tornam o clímax de Nosferatu uma espécie de filme apocalíptico, com a cidade tomada pelos roedores e caixões dos incontáveis mortos deixados pela doença trazida por Drácula.
Mortos que ao menos estarão livres por toda a eternidade de sofrer coisas piores do que deixar de viver. Assim, não surpreende que nesse Nosferatu se aceite tão bem a morte — Lucy indo frontalmente encontrá-la, a família no último banquete em meio às ruas tomadas de ratos, o próprio Conde, talvez —, todos ali, tal qual Drácula, parecem ter a experiência de coisas piores do que o último fechar de olhos. Jonathan, em sua cavalgada solitária para longe da câmera no plano de encerramento do filme, certamente a desejará antes de chegar em seu destino.
Texto integrante do Especial Nosferatu
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