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Zé do Caixão - Parte 2: O Barbarismo Real do Prazer

Esculhambação no Violentamento do Histerismo Horrorífico

Zé do Caixão

O Zé do Caixão é um brabo. O José Mojica Marins também. Mas porque diabos seu cinema é assim? Vou responder esta pergunta? Porra nenhuma. Mas a escalada da violência e horror por ela deflagrada é foda e existem teorizações diversas acerca da questão. Desde elemento conceituais, diante do fato do próprio Mojica crer que seu filme seguinte deveria ser sempre mais chocante que o anterior. A manutenção da tensão do público. Ou então fatores externos outros como a censura lhe enchendo o saco, ou então por conta dos pilantras nos quais dele queriam tirar proveito, o que manteve Zé boa parte da vida na penúria, em boa monta por vacilo dele também. No bambo, como dizemos no Ceará. E isto causaria uma fúria ao mesmo se vingava na ferocidade das suas obras. Ritual dos Sádicos (1970) foi feito sob esta energia. São motivações diversas e tesões conhecidos pelo horror.

Estética monstrutivista. Esta alcunha do Lucio Agra, em sua obra Monstrutivismo – Reta e Curva das Vanguardas (2010), denota a força do regramento interno desregrado e barbarizado desse nosso cinema bruto. Segundo Agra “o M de monstrutivismo é que vem a ser afinal esta cria estranha, meio ordem, meio caos, essa bizarra aproximação/apropriação de princípios opostos que acabam por se completar. (AGRA, 2010, P. 21). Algo a encaixar perfeitamente no cinemão do Mojicão da massa. Ora, seu cinema é daquele preto e branco brabo (ou colorido abusivo) que cospe contradições diversas. Seja o vilanesco Zé do Caixão batendo de frente com o carolismo e coronelismo em Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver (1967) com seu discurso virulento, no qual permanece como criatura a bater nos poderosos e oprimidos; ou então no caráter extra-diegético quando Zé filma a si mesmo com ares de intelectualidade e riqueza em Ritual dos Sádicos (1970), Exorcismo Negro (1974) e Delírios de um Anormal (1978); e fora das telas era o contrário disso. E estas incoerências se solapam dialeticamente no passar das suas obras. A violência ganha poder através do grafismo. O caos e a ordem citados por Agra permanecem vigentes em obras cada vez mais escusas na proeminência deste crescente nojoso do horror. Por isso que o foco aqui é sobre quatro obras do mestre onde a agressividade perpassa na tela com virulência, mas cada uma encaixada na proposição filosófica dum Zé do Caixão sempre à espreita. Porque esta aspereza fascina? A saber os materiais são Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), Ritual dos Sádicos (1970), Exorcismo Negro (1974), e o excerto curto Pesadelo Macabro da obra coletiva Trilogia do Terror (1968).


Lucio Agra e sua obra Monstrutivismo – Reta e Curva das Vanguardas (2010).

O horror do Zé é absolutamente físico e frontal. Sempre foi. Porém, a partir do 1968 o cara abriu possibilidade para manter sua brutalidade a serviço doutros personagens e sem perder o seu Zé já clássico. Dentro disso ele busca experimentar com este horror. Sem sair do imagético-físico. A carne sempre é destroçada. Independentemente se é estupro, assassinato ou exorcismo. Não interessa. Isto me leva a corroborar semanticamente com o termo monstrutivista. A ordem e o caos citados somam-se ao tom de fisicalidade e sujeira impostos. Um cinema monstro e monstruoso, onde suas peças vão cometendo seus mais variados absurdos dentro duma esfera, sim, de realidade altamente tácita que vincula o sobrepujar do outro. Algo próximo mesmo ao cotidiano desse Brasil. Em Cinema de Invenção (1986), do Jairo Ferreira, ele mesmo atesta esta questão. Ele afirma que o “Mojica descobriu um caminho; quanto mais realista a atmosfera em que emerge o absurdo, mais absurdo será o resultado.” (FERREIRA, 1986, P. 101). E aí mora a monstruosidade. O absurdo desacreditável é crível quando estamos diante dum real tácito. Conforme o professor Oãxiac Odéz confabulando e tergiversando sobre questões instintivas e nisso faz experiências com cobaias, afim de mostrar-lhes que a razão perde. Isto dentro dum ambiente de debate e canibalismo. Ora, são elementos possíveis que não quebram regras de dimensionalidade dum real estabelecido. Algo também a ser visto no uso e falso uso das drogas dentro dum mote de selvajeria urbana com os tais efeitos (e não-efeitos) dos tóchicos? Ritual trata disso ao fim. Os efeitos seriam, na verdade, placebos psicossociais internos de cada um. Problemas internos que tiveram forma de expressarem-se através do vínculo com a figura do Zé do Caixão, mas que internamente já residiam. O universo do Mojica-Caixão é nesse esquema de absurdismo realista, onde os personagens são postos à provações sensoriais que tangenciam com uma proximidade com a realidade dos expectadores. Por isso é uma parada brutal. Longe de ser uma fuga.  

Até quando parte para o farsesco do sobrenatural em Exorcismo Negro (1974), o faz usando-se como observador diante da influência de seu personagem e do crescimento do mesmo no extra-diegético. Uma influência já debatida anteriormente em Ritual dos Sádicos (1970), mas que aqui ganha contornos de disputa entre criador e criatura. O criador sendo mostrado diametralmente oposto ao Mojica real. As aspirações do cinema dele como figura de embate entre o próprio e seu personagem, que por necessidade mercadológica, ganhou cada vez mais espaço na vivência do Mojica. A narrativa de seu cinema também é calcada no usual vivo mesmo. Em carne, comida e no conluio social. Na bebida, nas festas, nas vivências, onde mesmo com o somatório de diálogos em frases feitas, o popular perceptivo está lá. Mojica visa um diálogo popular em seu material pelo advento de ser uma peça pertencente ao meio, e como tal visa a objetividade desta comunicação, mesmo que alguns discursos escalafobéticos demais de seus persoangens destoem desta questão. Mas que ele sabe expressar sua arte apar o entendimento do coletivo popular, ah, isto é inegável. É uma grande qualidade do Mojicão. Ser um puta comunicador.


Ritual dos Sádicos (1970)

Mojica aposta no excessivo, mas sempre carregando algo de corpóreo para açambarcar o real. Isto mantém esta tensão de absurdo real, que é o mote de despreparo conceitual do espectador, já que Mojica faz plena questão em aloprar um espaço que dialogue com o destroçamento surpreendente. A surpresa das suas obras – principalmente em seus finais.  Como diria o mestre Jairo Ferreira “cada fotograma filmado por José Mojica Marins respira cinema e somente cinema. Tudo é inseguro, pode explodir a qualquer instante, a exasperação domina. Ele ameaça relações normais entre atores, entre a câmera e o décor, o diálogo e a realidade.” (FERREIRA, 1986, P. 97). Este caráter de estraçalho e alopramento causam o tesão eterno pela surpresa. Daquilo que não se sabe o que esperar. Aspereza das imagens. As escolhas dos enquadramentos discursam tanto quanto o que é esbravejado. E com o espectro da pancadaria cruel presente desde os momentos mais objetivos quanto nos plot twists. Aí entra o existencialismo imagético forçoso do Zé. Cheio de planos fechados aterradores e lotados de significados das caras feias que mostra. No segmento Pesadelo Macabro do Trilogia do Terror (1968). Ali homens escabrosos são mostrados como ameaça e feiura, num momento a se conjecturar que uma desgraça vai acontecer. O diretor mostra as feições em primeiros planos daquelas horrendas figuras. O que a posteriori rimaria com a face do desespero da mulher estuprada. Explicito a questão em texto sobre o Trilogia aqui no site. A violência vem abraçada com a abundância do horrendo. O nojoso como preparo e segmento da brutalização. Por isso o Mojica tem um cinema monstruoso. Tudo ali é monstro. Ações monstras, gente monstra, narrativa monstra.

Um adendo sobre o Exorcismo Negro (1974). Este é até mais comportado em sua composição fílmica, intercalando dramas familiares e macumbas diversas, com destaque nas cenas de exorcismo aqui e ali. Mas quando escolhe encampar o destroço do velho e conhecido Zé do Caixão, o faz de forma chocante e multicolorida como só teria sido oportunizada em cores no vislumbre alucinógeno de Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver (1967). Aqui com todo o teor de desmenbramentro humano que as condições melhoradas permitiam. Esta entrada neste esquema mais estribado de cinema por assim dizer, poderia confabular uma fuga do velho Mojica, mas o que rola aqui é uma adaptação a uma crueldade organizadamente mais ajambrada na grana. Neste, o exagero das cores encaixa no espalhafato do personagem destruidor. Sempre buscando impor aquele vermelho sangue a todo momento. Assim acaba por meter uma monstruosidade monstra em seu fim. Cinema monstro com monstriçamento coloridoso. O que torna a coisa ainda mais invocada. De fato este material parte pro caminho mais aberto ao sobrenatural, com o embate entre criador e criatura e o escambau, mas não sem demonstrar a responsabilidade humana pela desgraça. O Zé aqui é um convidado desgraçado, que aparece para se impor e domina a questão ao final, mas a maracutaia toda só tem base por conta dos acordos vis entre familiares e uma bruxa/macumbeira. São estes acordos escusos que movimentam a trama. Que sai de um ponto absortamente real. A mesquinhez humana usada para atingir quaisquer objetivos que sejam.


Cinema de Invenção (1986), do Jairo Ferreira, e o próprio Jairo.

Este cinema é destrutivo. Disruptivo. Vil. E a sua gênese é no formato da sua transformação violenta. Os personagens funcionam como válvulas de exasperação física pela porrada. A destruição de tudo. Crescente. Exorcismo tortura e humilha, Pesadelo Macabro estupra mulher e enterra cidadão vivo, Estranho Mundo assassina, necrofiliza e tortura, mas Ritual... Faz tudo isso ao mesmo tempo tanto no real diegético quando na lisergia dos falsos efeitos das drogas. Parece que o cinema do Mojica e o brasileiro caminharam propositalmente até aquele grito de degradação. Onde não existem limites. Nisso o Jairo cita o grande Carlos Reichembach no avacalho destrutivo do Ritual dos Sádicos (1970), em material ácido. Em crítica ao jornal paulista Shimbun, estraçalha Ferreira (1986, P. 102), conforme citado por Reichenbach (1970), que “Ritual dos Sádicos é o primeiro filme didático – próprio para exibições em hospícios, conventos, institutos vocacionais de clubes esportivos, festivais de primavera, etc.” A fita era dum esquema tão severo que os respiros dele são, ou debates num pretume brabo ou caminhos para mais destroçamentos. E tudo muito direto. Apenas um fio narrativo que sirva para a demonstração conceitual do filme. Os desejos nossos internalizados sendo postos pra fora. Não são os tóchicos a raiz do mal, mas nós mesmos. Isso é a carreira do Mojica. O humano e suas escolhas pelo lado violento e as consequências disso. Sempre com o usufruto de muito sangue. Claro, tem que chocar mesmo. Sem frescura. Obviamente a fita fora censurada. Aliás todos os citados aqui tiveram algum tipo de corte ou reclamação do departamento de censura. O cinema do Zé era desconfortável para a moral carola vigente. Ele mostrava que a bestialidade e podridão era coisa nossa, e coisa possível, dentro duma realidade popular que poder-se-ia ser encontrada numa esquina próxima. Por isso que o final de Estranho Mundo do Zé do Caixão (1968) tem uma passagem bíblica profetizada por Deus para destruir o castelo do Oãxiac. Fora um pedido da censura, a qual clamava por um fim ignóbil para aquela turba. Teria de se ter um justiçamento. O cinema do Zé era o horror sem concessões. Um hediondo não poderia ficar sem castigo. A moral cristã clamava. Tudo isto porque a sua violência além de carnal era sem limites e tangível. Mesmo no, já diversas vezes citado, caráter do absurdo no real.

O terror pela abominação. André Barcinski e Ivan Finotti explicitam isso no Zé do Caixão: Maldito - A Biografia (2015). Os tons de realidade observados nos filmes são formulações do horror, que tão consideradas foram pela censura, e causaram furor social à época. Sobre o segmento terceiro Ideologia, do Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), eles tergiversam:

Ideologia é uma aberração, filmada com o ultrarrealismo de um documentário. O episódio inclui closes de feridas escabrosas, sangue jorrando aos borbotões e barbarismos gráficos impensáveis, além de um amontoado de blasfêmias e ataques à religião. BARCINSKI; FINOTTI, P. 279 (2015)

Pesadelo Macabro. Excerto dirigido pelo Mojica da obra coletiva Trilogia de Terror (1968)

O experimento através do abuso da violência. Ultrapassando limites estabelecidos. Cada vez mais abusivo que o anterior. Repetindo. O tal realismo proposital que abarcasse o desespero por proximidade do que nos é usual. Nisso somos jogados num debate de questionamentos filosóficos e morais, e dentro daquele universo somos testemunhas das mais variadas atrocidades disponíveis e possíveis. O ataque do Mojicão é uma metralhadora giratória com o objetivo de chocar e buscar o público. Ele sabe do carolismo da galera, mas também entende todo o tom tesudo pelo proibido que atrai o público. Então as referências ao horror se mantinham para atingir os mais diversos aspectos. Principalmente os moralmente mais subversivos. Invocado que Ritual dos Sádicos (1970) implica um estraçalho moralista no debate com as drogas, mesmo compondo que as mesmas não seriam culpadas pelas merdas dos indivíduos. E o negócio foi censurado por mostrar as coisas acontecendo. O tal consumo dos entorpecentes, e a selvajaria escolhida para compor a narrativa que ia desde cajado socado numa mulher, ao tesão com animais e outras atrocidades. Descubra mais detalhadamente os tipos de destroço deste material em crítica minha escrita para este descalabro bem aqui. Este era o cinema do Mojica. Engajado em aloprar mostrando a ruína sem medo, e cortado era por conta disso. Não por algum ensejo político, mas pelo avacalho carnal da coisa. Não havia material mais subversivo no caráter de destruição da carne e da moral conservadora cristã. O que é uma beleza por conta disso. É o cinema da aberração. Daquilo que ainda não foi feito. Do choque cada vez maior.

A mitificação deste cinema violento com o mito como figuração de lugar no tempo primordial, onde encaixa a filosofia existencialista do Zé. Mitificação com a violência a lá modus operandi consequencial. Com a barbaridade servindo como questionamento moral confrontador. E este confronto vinha dum misto do cinema doentio proveniente da cabeça do Mojica somado ao seu inconformismo com marmotas acontecidas com a galera da raia miúda, tanto de gente morrendo por conta de porradaria da polícia ou pelo uso de drogas. Não há uma crítica política frontal como outros diretores tentaram assim fazer, mas uma contestação pessoal do Zé para com seus arredores. Por isso a noção de culpabilidade em Ritual dos Sádicos (1970) não recai na droga, mas no âmago dos malefícios internalizados de cada um. A droga só seria um catalisador. Nisso ele usa de seu personagem para declamar um esquema de destroçamento, assim como Oãxiac faria em Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968). Ou quando deturpa enterros e avacalha tumbas na gritaria de Pesado Macabro em Trilogia de Terror (1968). E por fim quando, também, o próprio Zé em Exorcismo Negro (1974) que conclamado seria para a destruição e por ela ria e tudo invocaria. Mitifica a si mesmo e desmistifica o carolismo. Das formais mais físicas possíveis. Uma fisicalidade das tripas.


André Barcinski e Ivan Finotti no Zé do Caixão: Maldito - A Biografia (2015).

E esta violência existe como construto moral próprio dos personagens (Zé e Oãxiac, por exemplo) em conflito contra outras morais, e sempre em busca dum objetivo frontal. Benefício próprio, e exercido pelas ações. Seja pelo tesão em estar certo e aproveitando-se do canibalismo, ou projetando seu poder por sobre localidade interiorana em busca da imortalidade do sangue em casos anteriores. A mitificação através da atrocidade e dor visual daquelas imagens escrotas existe pelo discurso dos personagens, mas, existe com mais proeminência exatamente pelo que os mesmos fazem. Dentro caráter mais semiótico da coisa. O discurso abusivo seguido das ações destroçadoras, que é algo a unir todos os filmes. Através da tortura, canibalismo, estupro, desespero, enterro de viventes, desmembramento e os caralhos. É a mitificação dos personagens em um determinado nível, catapultada pelas ações viscerais que os coloquem no imaginário coletivo. É por isto Mojica entendia a capacidade da penetração do horror usando em sua metalinguagem para se comunicar. E ações escabrosas potencializam o discurso prometido. Zé e Oãxiac fazem exatamente isto. Prometem dentro do discurso, um descalabro, e este nos é dado, por isso toda obra dele vem com discurso de promessa. A obrigação do autor é cumprir a atrocidade que prometera. O Mojica era um comunicador horroroso num mundo horroroso ainda mais.

Aqui meto um pequeno adendo de origem. Cabe ressaltar que os personagens mojiqueanos clássicos não possuem mitos de origem explanados. Não existe origem do Zé, ou do Oãxiac. Não tem família e nem meio esculhambado para justificar-lhes como escrotos. Não como tanto clama o aporte de psicologia e política social progressista que justifique o mal. E nem se precisava disso. A intenção destes personagens era a demonstração de poder e ideologia como suporte e âmago narrativo para que se sobressaísse o abrutamento, afinal ainda estamos tratando do cinema de horror, e nada mais óbvio do que a utilidade da destruição. E estas figuras são bem intrigantes nisso, onde a dúvida de sua origem permanece, algo que, aliás, é de mote bem mais acadêmico do que diegético do cinema ou no extra conflagrado pelos expectadores. O mal é apresentado e desenvolvido a partir da perspectiva presente. Não existe um passado explicatório. O mal existe e ele veio pra aloprar. Nisso a ideologia deles formatada é tão chamativa. Já é um pensamento formado que necessita de ser entendido e, se possível, evitado.


Fabricante de Bonecas, excerto do longa-metragem O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968)

Mojica buscava a reinvenção de suas marmotas a cada obra, modificando questões temáticas de acordo com a grana na qual tinha pra fazer suas fitas, obviamente que a massacrante maioria abraçava a precariedade, porém algumas exceções eram realizadas, tais quais Exorcismo Negro (1974), produzida pelo Aníbal Massaini Neto. Que propiciara um orçamento mais robusto para o Mojica, de modo que o mestre desenvolveu várias tramas em vários cenários tendo direito a um ritual de casamento macabro em seu final que mede o encontro entre criador e criatura. Aqui num esquema de produção por exceção mesmo, sem os problemas habituais com suas soluções de improviso. Mas, mesmo dentro dum esquema mais profissional, ainda é o Mojica na pista, o que nos traz ao esquema visual de destroço grosseiro que encaixa no recorte perfeitamente. Com promessas a serem cumpridas. Não interessava o orçamento ser alto se Mojica não tivesse direito de violentar a plateia. Este era o lance. Por mais que esta obra especificamente não tivesse a ferocidade do Mojica de outrora, ela ainda carregava sua gênese, seu legado. E seu visual de rudeza que corrobora seu cinema no recorte proposto e citado. Este trazia o sobrenatural à narrativa. Uma forma de aproveitar o tema em voga do exorcismo. Diferencia-se dos anteriores pelo formato e abordagem inicial, mas sua base escrotizadora mantém-se. O fiasquento Zé aparece para debochar do seu criador e torturar uma ruma de gente, com mulheres nuas a cerca-lo e muito sangue. Como aquele terço final da obra, onde o personagem Zé dá as caras sendo uma marca intrínseca de existência e insistência dum cinema grosseiro e estabelecido como maldito. O Mojica comportado dentro da tela dar-se-ia a combater de frente seu personagem conhecido que traz toda sua conhecida carga fiasquenta. Como se seu cinema o perseguisse. Mojica demonstrava como poucos uma autofagia absurda, não só de produção propriamente dita, mas de temática. Comia a si mesmo em sua metalinguagem, onde tratava a si como intelectual e educado, porém levando chumbo do totalmente brutal Zé. A permanência da mitificação visual de sua tão citada violência.

O uso ativo da violência. Usada conforme constatação ideológica ativa. Barbarismo como encorajamento inicial. Nas obras aqui explicitadas do Mojica a violência não existe como reação, mas, sim como ação de saída. De começo. Suas figurações já agem em busca dos seus objetivos com a brutalidade como base. Sem subterfúgios. No artigo Agressividade e violência: reflexões acerca do comportamento anti-social e sua inscrição na cultura contemporânea, de Junia de Vilhena, a autora tergiversa sobre a questão quando cita um outro autor de gabarito como Matt Ridley (As Origens da Virtude: um Estudo Biológico da Solidariedade). Cita Vilhena (2002, P. 30), conforme citado por Ridley (2000. P. 293), “Os seres humanos têm alguns instintos que fomentam o bem comum e outros que favorecem o comportamento egoísta e anti-social. Precisamos planejar uma sociedade que estimule aqueles e desencoraje estes.” Encorajamento de comportamentos violentos e não-violentos. A busca pela não-violência em sociedade. A busca pelo acerto social conquanto a barbárie teria uma construção bem vinculada às inserções sociais da vivência no coletivo. A intencionalidade de entendimento da bestialidade contemporânea. O Zé vai pelo caminho inverso. Do anti-social. Desajuste social para imposição de moral própria com um tom de violência imputada num aparecimento do instinto, mas mostrada como mote primevo de existência.


Sigmund Freud e sua obra O Mal-Estar na Civilização. Seguida do grafite do artista Nychos (2016), do próprio Freud

Usando o clássico O Mal-estar na Civilização (1930) do Sigmund Freud, e principalmente quando é explicitada a violência ajambrada através da restrição da própria, Vilhena solta (2002), conforme citado por Freud (1933, P. 112):

São estes (os instintos agressivos) acima de tudo, que tornam difícil a vida do homem em comunidade e ameaçam sua sobrevivência. A restrição à agressividade do indivíduo é o primeiro e talvez o mais severo sacrifício que dele exige a sociedade. A instituição do superego, que toma conta dos impulsos agressivos perigosos introduz um destacamento armado, por assim dizer, nas regiões inclinadas à rebelião. Mas por outro lado (..) devemos reconhecer que o ego não se sente feliz ao ser assim sacrificado às necessidades da sociedade, ao ter que se submeter às tendências destrutivas da agressividade, que ele teria satisfação de empregar contra os outros. É como um prolongamento, na esfera mental do dilema “comer ou ser comido” que domina o mundo orgânico animado. Felizmente os instintos agressivos nunca estão sozinhos, mas sempre amalgamados aos eróticos.

O Mojica propõe o esquema de restrições quando demonstra a experiência do Oãxiac com as cobaias, na intenção – reiterando pela quadragésima vez – que o instinto preponderaria à razão mediante um ambiente extremo. Por isso o sacrifício apontado por Freud se atrela, prematuramente, ao posicionamento deste personagem. Porque ele aponta que o impulso vence, sem falseamentos. Como se fosse a vitória do superego. Mas o que ocorre ali é uma questão de escolha propriamente dita e propagandeada – forçosa e farsescamente – como se somente instinto fosse. A provação do Oãxiac Odéz existe conforme um ardil de domínio.  Ele prova que o instinto vence a razão com o uso de terceiros como cobaias, o próprio está além destas questões, já que promove a desumanidade em proveito da sua antropofagia. Por sua escolha. Assim como Zé que comete seus atos – nas vários fitas citadas – em justificativa ideológica, mas os faz não sem uma boa dose de prazer. O barbarismo como expiação instintiva como alimento, mas sempre por uma busca por prazer. A mitificação desta violência abraça o tesão, o prazer. Por isso tem o alimento do gozo. Do regozijo do estômago ao tesão da genitália.


Exorcismo Negro (1974)

A primordialidade e primitivismo deste cinema andam abraçados. Primordial exatamente pelo direcionamento bruto e objetivo que chamado de primitivo o é. Ora, o dilema “come ou é comido”, citado pelo Zé de Freud, é um dos motes do cinema horrorífico do Mojica. Que perpassa desde a criação do personagem Zé do Caixão em 1964 quando o mesmo ameaça a população que o cerca. Esta só tem a opção de confrontá-lo ou aceitar seu domínio. É imposição da brutalidade através dum maniqueísmo propositivo. Inclusive quando ele propõe uma libertação do ser humano em Oãxiac, numa espécie de busca ou provação de verdade, que afinal acaba por se mostrar como uma mangofa a servir para o benefício próprio. O horror do Zé não é propositivo para crítica social e melhora humana ou qualquer merda que o valha, mas, sim uma demonstração das mais variadas formas de podridão possíveis que o ser humano pode e consegue cometer e tem no Zé não um anti-herói, mas um desmistificador esculhambado, que profere e estraçalha ao fim de tudo. Sua trajetória é lotada de elementos contraditórios e ardis diversos, onde o mesmo bate de frente conta o carolismo, coronelismo, falsos moralismos, conservadorismos tradicionais burlescos, ignorâncias estapafúrdias e propõe defesas de crianças, liberdades instintivas e argumentações diversas. Mas tortura, mata, estraçalha, enterra, estupidifica, estupra e o escambau. Seus personagens são sempre carregados destes elementos em discrepância, o que os torna ainda mais humanos mesmo que pelo escopo do exagero. Mas um exagero real, próximo. Ao fim, a violência proposta e escolhida para conluio criminoso entre teoria e prática das ideologias destas figuras funcionam para os próprios objetivos. Sejam eles de merenda humana, perpetuidade do sangue, provação ideológica, tesão, ou manutenção de existência, tudo isso com um tom de propriedade sobre si. Um fim que mantenha a vivência egoística do mal que sempre escolheram. O instinto primordial é um presente ardil que não isenta o profundo tesão pelas próprias escolhas. 

Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968)
Ritual dos Sádicos ou O Despertar da Besta (1970)
Exorcismo Negro (1974)

Texto integrante do Especial Zé do Caixão

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