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Exorcismo Negro

(Exorcismo Negro, 1974)
6,8
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Uma possessão persecutória de pura metalinguagem autofágica das tripas

9,0

Obra envolta na questão do exorcismo, tão cara ao gênero do horror. O animal era mala. Resolveu desenvolver este projeto por sobre a propaganda do filme O Exorcista (The Exorcist – 1973) do William Friedkin, pegando carona no sucesso mundial deste. “Brasileiro é quem entende de Diabo”, ele dizia. Fora incumbido de tal intencionalidade macabrosa o produtor Aníbal Massaini Neto, filho do poderoso Osvaldo Massaini, e com a verba e disposição de produção da Cinedistri Ltda (1949 – anos 80).  Agora esse bicho finalmente tinha um orçamento mais robusto pra desenvolver sua fita, junto ao direito a cenários mais bem acabados e espaço para um elenco de alta estirpe. Foge do caráter do improviso das suas obras primordiais, mas se adapta a este orçamento de forma altamente certeira.

Aqui o José Mojica Marins cria determinada narrativa na qual envolve culto demoníaco dos segredos escrotos, vendas de almas e possessões vinculadas a laços familiares escusos. Logo de começo somos expostos a uma entrevista com o diretor José Mojica Marins acerca da sua obra, de seu personagem principal e dos seus futuros projetos. Além de ser interpelado sobre ser o Zé do Caixão, o cara da direção logo afirma que o Zé é coisa somente do cinema. Nisso ocorre certa manifestação estranha de resposta lá da casa do caralho. Ao jeito de Mojica. Interessante como o elemento subverte a si mesmo na obra. Põe-se como diretor respeitado e intelectual, porém sabemos que Mojica era brabo, genial e não tinha o respeito ao qual merecia na cena cinematográfica. Seria esta uma forma de demonstrar a reverência que deveria receber, ou um conforto com o qual teria de ser retratado, afinal o próprio já era tão massacrado por alguns imbecis que preferia lidar com aquilo que o público aceitaria do melhor bom grado.

Nisso o Mojica-diretor parte para a casa dum amigo aonde visa espairecer em férias. Isto duraria poucos minutos. Em pouco tempo se envolve numa trama  a perpassar dos rituais demoníacos do sangue à sessões de possessão. O que causa um interesse inicial não é o fato do Mojica-diretor estar envolvido nas marmotas de diabo e os caralhos por questão coincidente de roteiro – a cargo do chapa do Zé, Rubens F. Luchetti –, mas, sim, por tal destino de perseguição da esculhambação presente em sua vida. Como se o horror virasse sua aspiração e maldição. Ganhara nisso o bônus da questão, contudo teria de se virar com o ônus persecutório. Mojica investe num caráter experimental aqui conquanto ele como diretor tem de lidar com um horror alcunhado como real, já que seus filmes eram o que diziam deles: materiais escabrosos, sebosos, e vis, todavia somente obras de cinema. O roteiro do Luchetti condiciona a questão de experiência do personagem diretor a lidar junto das possessões e outras marmotas mediante não só seu empirismo no cinema, mas por estar sempre presente nas marmotas.

O filme assim caminha entre o Mojica atrás de descanso e o mal pairando ao seu redor. Até chegarmos na primeira possessão propriamente dita. Nos couros do mestre Jofre Soares, em cena exagerada nos trejeitos do mesmo e dirigidas com usos e abusos dos planos fechados que o Mojica gosta de aprontar, porém com um novo artifício a cargo do próprio diretor e do fotógrafo Antonio Meliande, que substituíra o Giorgio Attili, parceiro de sempre do Mojicão. Este novo esquema seria o usufruto das lentes grandes angulares no horror dentro da filmografia do diretor. De maneira mais abusiva mesmo. Outros diretores do bagaço trabalhavam isto muito bem. Quer exemplo foda? Vide o Larry Cohen destroçando com o seu Nasce um Monstro (It's Alive – 1974). Mas que demônios faz esta lente? Ela deforma objetos nos cantos da imagem. Entorta paredes. E nos primeiros planos deforma absurdamente as figuras. As monstrotifica visualmente. Nisso o Jofre Soares rasga sua roupa e olha para a câmera com olhos em preto e vermelho (é afirmado que Jofre não enxergava porra nenhuma enquanto se filmava isso) e de cara deformada pela imagem. Num estado de possessão monstruosamente diabólica. E exagerada. E sibila. Nisso o Mojica-diretor, abismado, tentando entender aquilo com o conhecimento que teria. Isto é Exorcismo Negro. Meter o Mojica-diretor dentro daquele universo insano em busca do entendimento tácito.

Como sempre o sujeito inventa de impor um caráter cultural bem peculiar ao seu empirismo daquilo ao quão preconiza como substância da cultura brasileira. Daí temos o esquema da macumba sempre presente. Pro mal e pro bem. Aqui na base duma chantagem a desestabilizar a família e incitar desgraças. As possessões. Sempre aproveitando-se dum visual grosseiro que sabe fazer, com figuras, bruxas e bichos asquerosos a perambular os espaços. Agora dentro do uso das cores, em vermelho sangrosos demais. Maravilha. Nisso a obra vai num crescente de núcleos onde esperar-se-ia que todos eles se encaixassem ao fim. E é aí que o velho Zé nos alopra. Encaminhando a obra para a esfera da metalinguagem. O vilanescoso não era exatamente a bruxaria e o macumbal, mas o próprio Zé do Caixão personagem manifestado e o próprio José Mojica diretor vai confrontá-lo. Óbvio que a originalidade peculiar do diretor nos propiciaria um trato metalinguístico invocado. Criador e criatura em conflito dialético. A influência da obra de Mojica é explicitada. Zé é real, parte do Mojica. Um aporte de metalinguagem ainda mais visceral daquilo proposto genialmente pelo figura no Ritual dos Sádicos ou O Despertar da Besta (1970), que é um troço escrto que discuto numa crítica bem aqui, no esquema. Lá há a influência do personagem Zé nas pessoas. E estas expõem seus mais variados anseios doentios na presença do sacanoso. Aqui é questão de embate direto. Criador e criatura. Mojica adentra no próprio universo criado por ele, indo ver de perto o inferno de tortura, morticínio e destruição carnal que seu personagem ajambrara.

Com a contingência dum orçamento robusto, Mojica se refestela nos efeitos de maquiagem a mostrar esfacelamentos e desmembramentos. São mãos e dedos arrancados e tripas a mostra. Naquele vermelhão vivo do sangue do terror anos 70. Joia. O cinema de horror dele num preto e branco cadavérico sensacional daria lugar aqui ao colorido do exagero para demonstrar com mais força a violência proposta. Com direito ao Zé-personagem comandando rituais escrotos e rodeados de mulheres nuas ao gosto do que o Mojica propunhava. Este inferno cavernoso e macabro é transposto na parte final a jeito que atenda uma decupagem de enaltecimento, grandeza e poder deste grande personagem. Ode ao horror. Onde o poder é demonstrado, com cinismo do Zé-personagem e estupefaciência do Mojica-diretor. Zé-personagem está na sua casa. No ambiente de tortura ao qual fora locado por seu criador afim de ganhar sobre o primeiro. Então o debate dá-se pela existência de um e culpabilidade do outro. O Mojica-diretor clama por uma desistência do Zé-personagem. Algo que não vai acontecer. Zé-personagem não alisa e não perdoa. Assim o mesmo fora criado. E desta maneira vai continuar agindo, torturando e matando. A responsabilidade do criador é mantida. Com arrependimento e desistência silenciosa. Zé-personagem é gritaria, é zuada, é cores fortes agora, é o exagero de sempre. Escalafobético e fiasquento.

Um encontro fenomenal pondo a prova tanto a influência do seu personagem sobre si, quanto como o horror pode ser visto diante de esferas tão personalistas a identificar criador e criatura como traços duma persona, e que a visceralidade do fazer cinema funciona como um pedaço de carne colocado para alimento de si mesmo. Cinema é autofagia. É comer a si mesmo. Uma lógica circular do autor como ser vivente que anda, mata, come, trepa e caga. Ele se alimenta de si enquanto produz seu cinema. Quando o cara cria, ele expõe a si para os outros comerem. Estes outros comem os restos, onde todo o esforço e destroçamento dos músculos, tripas e sangue já re-devorado fora pelo cineasta no processo de criação da práxis que o cinema obriga o auto-refestelamento. Suas aspirações, esperanças, frustrações e esculhambações estão ali vomitadas e regurgitadas. Porque o ato de fazer cinema é estômago e putaria. É pensar que é gênio num minuto e se achar um imbecil no outro. Foda-se as agruras do processo. O que mais importa é o troço ser feito. Finalizado. Distribuído. Devorado. Nem que sejam só os ossos. Nisso o mosaico da criação desta fita é perfeito. Por causa deste encontro de si com si. A catarse do universo iconoclasta do Zé-personagem que o Mojica-diretor, dentro da fita, vê sob ótica de culpa e responsabilidade própria diante da sua criação. Sua saída de cena melancólica contrasta com a gargalhada dum Zé sacana. Mojica demonstra, como sempre, que era um cara foda. Autofagicamente.

 Texto integrante do Especial Zé do Caixão
Partícipe do Especial Abrasileiramento Apropriador do Halloween

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