Gerundiando, os filmes de David Lynch parecem ser inevitáveis de vir à vida ao próprio bem-estar do realizador. Praticante da meditação transcendental e auto-honestidade, são necessidades analgésicas de um diretor que de maluco não tem (quase) nada; um ser carente de compartilhar seus pontos de vista em percepções alheias, que possam ou não codificar o teatro, com traços retos ou proporcionalmente abstratos. Lynch é... Lynch, apesar da banalidade do seu nome se o leitor não assistiu a 1 minuto sequer de nenhuma obra do autor, cuja unidade persiste do fator literal do termo, unité. Isso porque suas marcas são mais fortes que suas propostas bipolares, por excelência, sempre sobre desajustes sociais, desmistificações do senso-comum ou ambas. Concluindo, fato é que não há possibilidade de sinopses serem fiéis a seus filmes, nem mesmo análises pretensiosas o bastante a englobar cada traço das pinturas projetadas em precisão cirúrgica; e História Real não é exceção, quiçá de cenário.
Engana, mas é outra das miragens de Lynch.
Eu me identifico com o personagem principal. Em qual outro filme do diretor já citado eu poderia afirmar isso? Tenho que aproveitar... Viajar em um trator para poder matar saudades de um pretérito prestes a ser para sempre enterrado, eu faria essa jornada! Talvez após pensar duas vezes, graças a esse maldito comodismo da vida contemporânea, mas não Alvin Straight. Straight, direto, honesto, linha reta que se junta à de uma estrada rumo ao inesperado, mesmo em idade propícia para ser o avô da menina que ele encontra durante sua pequena grande odisseia; um parente mais experiente de cenários que olhos mais jovens ainda consideram insondáveis. Não para a barba branca e os olhos esperançosos do nosso herói, estereótipo bem-vindo na filmografia agridoce de... Lynch pode resgatar perímetros humanitários em uma pequena manifestação humana, sim, mas recompõe a figura anciã em ações que não carecem de contexto, responsabilidade, padrão ou tangentes executórias, e resgata em belas interpretações ideológicas um estudo de personagem bilateral, ainda intocável no rol das fórmulas. O dia em que David Lynch se banhar em fórmulas mercantis, que escoasse então pelo ralo, em prol de não voltar a se/nos contaminar, mais! Seu analgésico terminal, nesse caso.
Após História Real, o faro sobre a maturidade vibracional de Lynch para realizar o que tornar-se-ia degringolar como seu próximo projeto, Cidade dos Sonhos, antes teorizado para ser um piloto de TV, e a importância prática do seu fetiche com estradas de duas (e mais) vias, são coisas curiosamente dignas de epifania. Por exemplo, é incrível o refinado grau de extração sensorial e, claro, revogável, no bom sentido, de personagens com conflitos rasos e sem serem apáticos por tanto; é a produção de vida inteligente em bestiários, a água que surge de duas moléculas invisíveis, o brilho da escuridão nas estrelas que o velho Alvin observara, tantas vezes. Filmografias são murais que refletem determinada constelação, e não posso alegar que História Real seja imprescindível nas veredas expressivas de Lynch, sendo um exemplar de versatilidade a fim de nos fazer esquecer, por instantes, por dicotomia, obras do quilate de Veludo Azul e Eraserhead! Materializadas, essas seriam punks e astronautas a trafegaram nos quilômetros humildes do vovô Alvin, o amante do passado. Acho que ele era um canceriano, um canceriano sem lar, beijoca ao Raul Seixas.
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