É possível sentir o peso cultural de filmes assim, onde acaba sua poesia e uma letargia e memória à realidade ainda presente em vários países, junto a um contexto histórico, começa. Crianças, velhos e adultos roubando melancias, nômades na estrada, um grupo inteiro de retirantes italianos a vagar, diante da ameaça da guerra iminente, sob o que de trágico e cômico existe nessa situação de desapego à terra nostra, mas jamais aos costumes enraizados, nessa condição humana de fuga do próprio lar, da raiz, oposta a qualquer nacionalismo fascista e responsabilidade de honrar bandeiras. A Noite de São Lourenço, que de períodos noturnos a obra quase não é feita, conquista nossos sentidos, lucidez e comoção ao abolir filtros e máscaras no encarar poético de uma representação cultural, cujo refinamento de ideias a partir da guerra, como se apresenta o bombardeio na igreja cheia de fiéis, e outras cenas sensíveis, ganha contornos magistrais e não apenas estéticos ou pueris, ao longo de uma harmonia sensorial na tela entre essa estética, e uma aquisição pelo dever de mostrar um passado real.
Quando a igreja explode, explode a esperança de um povo com um Deus que os condena, finalmente, num ponto de virada fundamental a história e sobre tudo o que já podemos refletir sobre ela. Logo em seguida, nota-se uma alusão desesperada a Dante, aquele que feito Hermes, da lenda grega, se aventurou pelos círculos e ciclos do inferno, a fim, talvez, de encontrar a tão esperada salvação nas linhas tortas do destino. E que futuro cairá sobre os condenados desse mundo senão destruir uns aos outros? Um filme de guerra, sim senhor, mas além do seu gênero no fatalismo consagrado na visão otimista de uma guerra, mesmo quando as primeiras artilharias começam a cair sobre os ovos recém-botados na cesta.
No filme da dupla Taviani, manifesto obrigatório e de notável inteligência emocional nas relações que emoldura, de uma forma implacavelmente doce e dura, feito rapadura, se assim for o gosto no andar solitário de uma criança entre soldados e familiares mortos, donde, justamente de cenas assim, surgem a graça e a beleza daquela ironia e da natureza que a história não deixa de louvar, a cada plano, cada sequência, já que o mundo só pode ser salvo quando uma camisinha vira um balão na inocência dessa criança, a correr, livre, nas matizes de um cerrado; ambiente e personagem, campo e semente, na narrativa de um drama inesquecível.
É claro que as cores são indispensáveis numa obra de entrega total, em todos os sentidos. Aliás, essa parece ser a única afirmação tangível referente a Noite de São Lourenço, sendo o que resulta do imprevisível, durante a projeção, um dos aspectos mais admiráveis aqui presentes. Tudo é tão rico de interpretação que chega a dar água nos olhos, fácil, fácil, numa guerra tão histórica quanto condenável – um julgamento que o filme jamais realiza, obrigação do público tal é. Pouco sangue nos (belos) vales da morte, prados tal o sertão brasileiro, ou o deserto muçulmano, onde uma cultura e a humanidade do ser ainda são postas à prova, e é isso que a obra trata. O triunfo de uma nação, na necessidade de provar ao mundo sua resistência. Todas as artes já passaram por isso, o Cinema pouco sabe disso.
O que se sabe, agora, por nós, é a profunda empatia a extrair de um audiovisual tão completo quanto o que se faz pulsante em Noite de São Lourenço, ainda que relativo na recepção de seu conteúdo, na fotografia imortal de uma espécie que tantas vezes acha no combate a razão de viver, sob um céu indiferente a assuntos terrenos, incluindo a extremos feito “fatalismo e encantamento pela vida”, tão pertinentes na ótica dos irmãos Taviani, sublime cineastas a pintar, em 1982, a alma cristalina de uma história a poluir o currículo da humanidade, antes da chuva chegar, milagrosa, talvez, e lavar nossas concepções de mundo, boa parte delas. Uns vão dizem que isso é arte. Mas, ao certo, ninguém sabe.
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