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John Carpenter - Parte 1: Monstrotificação

A monstrotificação do horrorífico

Uma das idiossincrasias mais invocadas do John Carpenter é conseguir inserir o terror em qualquer ambiente e vindo de qualquer situação. Obviamente, para isso ser bem desenvolvido, há a questão das escolhas no seu próprio modus operandi. O isolacionismo dos corpos e a solidão mental são componentes primordiais ao cinema do mestre e dentro disso ele percorre e perscruta com sua câmera os medos dos seus personagens de forma a se ter uma perversidade invisível à espreita. No aguardo para aloprar. Quando entramos neste tema, o primeiro material que vem à cabeça, obviamente, é Halloween - A Noite do Terror (1978), entre outros, junto ao seu Michael Myers a simbolizar, sim, determinado elemento na vigilância. Mas o meu objetivo aqui é listar – e comentar brevemente sobre – três filmes do mestre que usam deste expediente e não tão explicitados quanto seu maior sucesso. E a figuração escolhida é a simbiose de criaturas ou o surgimento dalguma coisa escrota vindo a funcionar como uma puta desgraça. Myers personifica a perversidade ainda num tom de catarse humana. As obras escolhidas seguem um esquema desde simbiose à coisificação do mal.

Eu chamo este processo de monstrotificação. É a existência de qualquer coisa que vire monstro. Não necessariamente humanoide, como no Halloween, mas que seja um mal concreto e perceptível e simbólico do terror, ou então algo a nível psicológico e atmosférico num primeiro momento. Não estou inventando porra nenhuma. O conceito das coisas e criaturas etéreas (ou não) assassinas é antiga – proveniente doutras artes até, basta conferir o trabalho de gente tal qual H. P. Lovecraft –  e não farei aqui nenhum exercício arqueológico para intencionar a existência do processo em seu nascedouro, mas, sim, discutir como o Carpenter se utiliza disso em suas obras. As peças escolhidas com esta intenção foram Assalto à 13ª DP (Assault on Precinct 13, 1976), A Bruma Assassina (The Fog, 1980) e Christine, o Carro Assassino (Christine, 1983). O recorte temporal também fora pensado. Quis pegar o material considerado intermediário dele nesse período. As três fitas com críticas minhas aqui para este recorte especial.    

Se tem elemento caro ao cinema do Carpenter, é a sua câmera e como ela se comporta diante da malignidade. Sendo um diretor absolutamente preocupado com o visual, e que sua mensagem fosse passada principalmente nisso, ele seguia um esquema de preparo bem calculado. Vinculando seus personagens a ambientes que os deixassem deslocados ou desconfortáveis. Isso vinha num crescente como uma desgraça. Nisso sua câmera era proeminente. Dar espaço para o desconforto convulsionar. Até o ápice destroçador. Em Assalto à 13ª DP, temos a gangue que – sem motivação cognoscível – passa a ser destrutiva contra qual coisa que lhe embarreirasse. Acaba por atacar uma delegacia semiabandonada. O diretor opta por não dar personalidades específicas aos membros da gangue. Isso fica bem claro quando ele mata o suposto principal artífice dela antes da metade a fita. O lance era criar a maldade sem liderança alguma. Monstro orgânico sem face discernível. Tanto que os vários vagabundos morrem no ataque e são sempre imediatamente substituídos, porém mais parecem tentáculos duma lula gigante. Quando um destes braços é cortado, vem o outro em seguida. Por isso a fita se diferencia de outras por não tratar dos humanoides como humanos, mas, sim, como uma gororoba visceral sem a personalidade discernível duma criatura. O objetivo é a destruição. Some-se a isso os ambientes segregacionistas. Tal qual como no A Bruma Assassina, quando os cidadãos ficam cada vez mais isolados por névoa etérea de proveniência incógnita, todavia, a mesma já possui um objetivo. E Christine? Monstro corpóreo e com um objetivo claro, o mais claro dentre os citados, que é destruir todos a interferirem na sua relação junto a seu dono. Mostrada ameaçadora pelo modo conforme é objetivada pela câmera. 

Um homem e sua câmera. As zonas e a lente. O que une sintomaticamente os filmes, nas características apresentadas, é mesmo o diabo desta câmera do Carpenter. A escolhas dos planos dizem muito sobre este recorte. Uns de início sem necessariamente mostrar o intimidador explícito, mas sempre num trabalho com o extracampo do medo, enquanto noutros, o som vem discursar como um complemento ao que afirmam as imagens. A segregação espacial das futuras vítimas no terror sendo exercido por som e trilha sonora, como um somatório pesado ao imagético, era ponto comum nestas obras. Até no Christine, em que, antes da própria trilha explodir, havia o ronco dos motores exibido em alto tom, quando ela perambulava bonitona pela tela, mesmo já tendo uma morte no currículo. Os tons de malefícios esquisitos. A câmera sempre passeando e delineando lugares, seja no isolamento interno da cadeia, quanto na pressão sobre a cidade pequena e chegando na exibição cada vez maior dum carro-monstro. Aqui mora a genialidade. Mostra, sem mostrar, pilantras escarafunchando delegacia com uma lente observadora na visão dos amedrontados; como também, noutro material, numa névoa a perseguir as pessoas numa cidade caipira que só visualizam uma fumaça esquisita. Ademais, percorre o diegético com um dolly out ao sair dum acidente e no momento seguinte percorre o caminho num travelling acusador ao mostrar Christine como mal presente. Com direito à saída do brilho solar sobre o para-brisas num gesto de desconfiança. As angústias dos seus protagonistas também são plenamente captadas, tirando-os do conforto trivial e rebolando-os no desconhecido; tais quais os resistentes do distrito cercados e com luzes escapando para seu ambiente, num olhar a eles só esperando para atacar. Ou então apresentando soluções narrativas de influência maligna. Arnie se transformando mediante o contato com seu carro. Do nerd medroso, vemos a posteriori um escrotinho desenvolto. E a captação dele se modifica. As luzes fecham. Fica só o vermelho sangue. Não esqueçamos duma certa fumaça branca a cercar as casas interioranas movimentando-se como vívida força malevolente. Fechando o cerco numa cidade onde seus moradores não têm ideia de como lidar com aquilo, já que sua existência é a rotina da tranquilidade. E nisso a câmera se movimenta sendo, também, uma força etérea. Perambular. Em todos.

A imagem como transformadora das substâncias imputando monstros em nossas cabeças. E o cara usa os artifícios do cinema para demonstrar este mal puro independente de indivíduos específicos. Sem face a estapear. Aquele de origem obscura, que não aceita diálogo, que não se pode entender ou adestrar. A saída é somente uma: o conflito. É aceitar a situação e bater de frente, caso assim não o faça, é estraçalho latente. Seja por espíritos mortos numa névoa, vagabundos visualmente zumbificados ou uma caranga-monstra. O destino é sempre o mesmo. O desconhecido da destruição.

Texto integrante do Especial John Carpenter

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