Um tesão de carro em seu erotismo num vermelho sangue
Material de primeira do mestre John Carpenter sobre certo carro assassino. Christine, o Carro Assassino (Christine, 1983) é baseado em livro do outro monstro Stephen King. O diretor abraça o caráter de explicitude erótica adolescente tanto na narrativa quanto na sua câmera observadora e observada. Contando com uma das suas mais marcantes trilhas sonoras. O garoto e seu carango, o sonho adolescente norte-americano sendo vendido com assombro e ironia. Revestido com violência, obsessão e tesão.
Único veículo vermelho na linha de montagem. Adolescência. Sexo. Garotão e carro unidos como num rito de passagem masculino em direção à fase adulta, mas agora cercado de loucura e desajuste não resolvido. Apresentação dos personagens. Carpenter sempre franco e pragmático nisso. Mostrou o carrão aloprando logo na abertura e ainda estabelece os humanos bem definidos. O nerd, o amigo, a namorada, os pais. Assim temos a exposição das cartas na mesa, com o foco no terror tanto na transformação gradual do nerd Arnie quanto na ameaça que é Christine. Há o interesse em perceber o tom devasso juvenil objetivado e objetificado. O erotismo e o instrumento desta sensação. Desde os anseios carnais dos jovens a perpassar por várias temáticas. O esporte, os conflitos escolares, o contato sexual, as amarras dos pais. A bobajada toda. Tudo isso servindo para introjetar este tom de filmes eróticos, nos quais usam o direcionamento dos desajustes para responderem à putaria como válvula de escape. O gozo como fim. E aqui os problemas do crescimento são usados como degraus motivacionais para a liberdade luxuriosa almejada. Singular alteração de direcionamento. Maturidade. Independentemente de que seja por desgraças maiores. A vingança do nerd. Do nerd ao James Dean insano – outro símbolo sensual desajustado. Obsessão, compulsão, abuso. A escuridão na loucura do Arnie. Transformação mental e física. Desde seu encontro com Christine, tem fogo ativado e metamorfoseia-se ao tom de paixão que sente por sua máquina. Sai a timidez e entra a segurança, que acaba por terminar na loucura. Processo inteligente e calculado, desde sua mudança de vestimentas e olhares mais psicóticos até a luz jogada sobre ele. Cada vez mais forte em cores monocromáticas e coberta de sombras sempre que possível. O brilho saíra dos seus arredores e internalizara-se em tons avermelhados.
Para se encaixar na atemorização proposta e no erotismo metálico, caberia aqui uma trilha sonora do cacete. E a serviço da obra e não por si mesma. Aliás, o Carpenter cria e usa trilhas como poucos. O tom atemorizante dos sintetizadores vai num crescente desde a primeira morte, num conluio criminoso com uma percussão regida no comando dos movimentos da carruagem. Tal qual um aviso partícipe da desgraça. Mostra presença, mas é convidativa, até a explosão mortífera. Corroborando a isso temos o intenso som dos veículos. Parte essencial da narrativa. Ora, os carros são personagens e sempre mostrados em glória ou enaltecendo características dos seus donos, criaturas humanas. Seja no modernoso azul cintilante do amigo, no funcional do chefe ou na viatura de cor fria e sem sabores do policial. Além desse caráter visual, os sons dedicados a eles. A ela, principalmente. Christine. Uma fera viva. Gritando, gemendo e se contorcendo. Mostrando todo o sabor da sua voz rouca e ardente. Tal qual uma mulher voluptuosa pedindo mais. E quem resiste?
O tratamento do olhar para com os carros. Como se fossem corpos. Capturando excitação, admiração e apavoramento. A cena do strip-tease metálico. Lascívia. Fotografia, trucagens e trilha. Desde a escolha da decupagem desta cena à música erótica. Arnie pede a Christine que lhe mostre tudo e ela vai lá e o faz. Com a câmera deixando o carrão se transformar em detalhes como se fosse uma mulher gostosa a dançar e a se despir completamente. Vermelho de sangue e desejo libidinoso. O diretor brinca junto às perspectivas, algo que ele já teria feito genialmente em Halloween - A Noite do Medo (1978). Aqui ele escolhe a subversão erótico-strip e traz um olhar espelhado da Christine para com seu espectador. Direto. Ela encarando a câmera. Esta pausada e centrada se encaixa perfeitamente à temática proposta. Abordagem de frente, sempre mostrando o carro como um personagem vivo. A exibição das suas feições. Vide a maneira que o próprio se estraçalha num corredor estreito feito uma fera a caçar um animal. Ou em seu final, quando, após ataques ferozes na oficina, acaba por ficar com aparência escrota de carro-monstro, com uma puta bocarra. Com direito a dentes nos amassados e rasgos do metal. Há também um plano sensacional abordando a personalidade da caranga. E é exatamente o primeiro – após a reforma feita por Arnie – de frente com o carro sozinho e logo em seguida ao acidente no campo de futebol. O plano pega Christine frontalmente. Devagar, a esperar que as criaturas humanas saiam da tela; a câmera continua a se mover muito lentamente, mostrando um brilho no canto superior direito do parabrisas da caranga. O brilho some e estamos sendo encarados por aqueles faróis escrotos nos escarafunchando. Do brilho renovado ao caráter de terror presente. O mal.
Por isso Carpenter é gênio. Ele consegue transpor o poder das sensações perfeitamente com sua lente. Isso é característica primordial do cinema. Seja com ojeriza ou tesão. Caramba, conseguir dar vazão a questões absolutamente humanas e lúbricas por meio de um automóvel? É coisa de craque. De quem manja. Por isso a opção dele em dar espaço para os objetos é tão acertada. Assim se cria a tensão proposta, tensão divisiva, por sinal. Ora no tato do erotismo vulgarizado entre homem, carro e mulher; ora no medo por um simples ligar de um farol, ou no olhar silencioso de uma máquina a observar seus arredores, nos quais tem absoluto controle. Sua câmera é refém abusada e canalha perscrutadora ao mesmo tempo. Vulgar e matadora. Tal qual o conceito de um carro homicida sexual.
Texto integrante do Especial John Carpenter
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário