Jogo de cena é um filme para se ver várias vezes. Apreciar e se perder em cada cena. Aliás, o nome do filme é umas das escolhas mais felizes para filmes que me lembro de ter visto.
A proposta de Eduardo Coutinho é algo bastantemente explorado pela literatura e faz o leitor, muitas vezes, se perder (e se encontrar) na trama urdida pela palavra. E é essa a proposta desse documentário que tem como mote histórias contadas por mulheres comuns, em um teatro, sentada de frente para uma câmera e tendo como interlocutor direto o próprio Coutinho.
A questão central do filme, a meu ver, pode ser sintetizada na seguinte questão: onde se situa a fronteira entre o fictício e o real? A proposta do filme, mais do que responder a esta questão, confessa, francamente, não ser possível fixar fronteiras claras que delimitem o território da ficção e o território da realidade. Aliás, tal questão ocupa longas reflexões na Filosofia e, em linguagem cinematográfica, operada por um diretor bastante experiente, ganha contornos outros e uma outra proposta: no lugar de querer separar ficção de realidade, Coutinho nos mostra que tanto uma quanto outra não passam de cena, ou melhor, cenas. Tudo não passa de encenação, independente de seu estatuto de verdade ou mentira.
Com um elenco estrategicamente pensado, que põe em cena três atrizes conhecidas do grande público: Marília Pêra, Andréa Beltrão e Fernanda Torres ao lado de outras atrizes que não são conhecidas pelo público uma vez que têm seus trabalhos realizados em outros espaços que não a televisão, Coutinho cria uma espécie de simulacro e algumas armadilhas para o espectador incauto, aquele que opera na lógica original x cópia. Tirando o fato de que as três atrizes mais conhecidas serem atrizes, fica a pergunta: quem está interpretando quem? Aquela que realmente viveu o que narra ou aquela que encena o que a outra (a verdadeira) narrou? E não seria também encenação daquelas que não são atrizes? Afinal, a memória é sempre lacunar e atravessada pelas impressões presentes do sujeito. Jamais recuperamos o que vivemos, apenas reinventamos, criamos personagens protagonistas de nossas memórias.
Em relação às histórias narradas, é impressionante o poder de comoção que elas nos causam. Particularmente, não teve como segurar as lágrimas ao ouvir o relato da mãe que teve o filho assassinado em reação a um assalto e nem de imaginar a linda imagem, e também inusitada, dos legumes que brotaram na geladeira que parecia um jardim todo cheio de comida brotada, nas palavras de uma das mulheres que conta sua história.
Todas as histórias são atravessadas pelo fio da dor, da perda e da superação e da tentativa de se conformar diante da vida. Coutinho nos lembra do nonsense que é a vida. Ela simplesmente é.
Enfim, vale super a pena assistir a esse fantástico filme que abala muitas dicotomias relativas à ficção x realidade. O jogo proposto por Coutinho coloca a nós mesmos em cena, mostrando que bons filmes, na verdade, não precisam de muitos malabarismos e tampouco efeitos especiais. Uma pena ser tão pouco divulgado em um circuito que atingisse mais pessoas, embora ser uma produção de altíssimo nível.
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