Sintomático Scorsese executar tamanho esforço para realizar esse seu The Irishman nesse momento. O filme em vários aspectos representa um ponto de chegada para o diretor, uma recapitulação necessária quase metaliguística, não a tôa segue-se aqui a narração de um De Niro já idoso descorrendo sobre seu passado, se desnudando sem pudores ou receios ao mesmo passo que se questiona de maneira melancólica, na função do maior observador de si próprio. Curioso sair também próximo ao The Mule do Clint Eastwood, outro que é uma espécie de documentação redentora/revisionista de seu cineasta, por mais que Eastwood seja ainda mais pessoal, profundo e auto-crítico.
E munido desse propósito, Scorsese abraça uma densidade textual que vai muito além do emaranhado criminoso que alimenta a trama em si, tudo acaba sendo regado por um subtexto que não hesita em falar sobre todos os temas caros ao diretor, mas aqui antes de tudo ele anseia observar o limite deles todos, da honra, da ganância, do orgulho, do compromisso e todas as fraquezas que comprometem esses valores e como não importa a grandeza do gângster, ele é cercado por fragilidades emocionais e comprometedoras. E desvendar como tudo pode dar errado e assumir os motivos que levam a isso, já deixando claro que a desgraça reside no interior, é o que mais deseja estruturar Scorsese aqui.
Assim sendo, Scorsese precisa do tempo. Fundamentalmente. Este já definidor quando da altura da realização da obra. Empenhado o diretor ainda descorre por três horas e meia necessárias para dialogar com toda a passagem de décadas que se assiste e seus efeitos devastadores, sentir o desenrolar faz parte de todo processo, The Irishman precisa ser longo. O espectador precisa notar as mãos enrrugarem-se, as falas ficarem graves e carregadas - ai entra também o cgi necessário -, os olhares exprimirem uma desesperança gradativamente mais cortante. Cada ato, cada crime ou articulação política precisa de seu tempo de reação, as consequências de tudo aqui são essenciais para as observações propostas. Um crime cometido numa noite precisa ser seguido do assassino sendo chocado com a notícia no dia seguinte. Uma reunião precisa ser seguida dos ânimos provocados por ela. O homem precisa encarar suas atitudes na manhã quando acorda.
E na personificação de toda essa bagagem, todas as oscilações emocionais que atravessam décadas de vida, é um filme que jamais seria o mesmo com atores abaixo do excelente. Mais uma vez o aparente fetichismo de Scorsese revela a sua real importância. (SPOILER) A cena na cafeteria onde Pesci dissimulado e objetivo diz a De Niro, emotivo, que Pacino deve morrer por suas mãos é determinante nesse aspecto, nada é dito além de um "fizemos o que foi possível", mas ambos sabem o que vai se suceder. E o que reflete em seus olhares precisos é nada além da memória, lembranças que por alguns segundos se desenham, Pesci continua preparando o cafezinho, como quem estivesse fazendo o que tem que fazer ao ordenar uma morte, enquanto De Niro desvia o olhar para cima, contrário à mesa, mesmo sabendo que terá que encará-la. É quase a conclusão do filme, o peso do tempo caiu ali naquela mesa, nos semblantes cansados de terem que fazer o seu trabalho inevitavelmente. Não a tôa, um pouco depois, o ato da morte de Pacino é sem cerimônia alguma, é seco e rude, como, adivinhem,... o tempo.
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