A vossa espingarda é apenas um instrumento de matar. O coração endurecido é que mata. Se não tiverem um instinto de matar decidido e forte, hesitarão no momento da verdade. Não matarão. Serão fuzileiros mortos.
“Nascido para Matar” de Kubrick nos passa uma idéia interessante sobre o ser humano do Vietnã, mas não só, Full Metal Jacket é ao mesmo tempo, também um espelho cruel e sincero de nossa sociedade. Chega a parecer com a idéia do “Bom Selvagem”, que Rosseau propunha no Iluminismo: “o homem nasce bom por natureza, mas é a sociedade tratará de corromper seu caráter”. Grosso modo, tal conceito aplica-se a “Nascido para Matar”. O homem é aquilo que a sociedade, através de seu meio de controle, o educa. E a sociedade americana, por conseguinte, devido ao seu poderio econômico, grande parte de nosso planeta, é educada para a guerra. “Tiros em Columbine” de Michael Morre tratará muito bem disso, Kubrick, ao seu modo, utilizou de toda sua acidez junto ao portentoso controle das imagens, para retratar o seu reflexo sobre a Guerra do Vietnã.
Full Metal Jacket veio tarde, nisso temos de concordar, todavia, a visão de Kubrick sobre o conflito é extremamente válida, além de ser um filme puramente Kubrickiano: há expressões faciais que entraram para a história do cinema, a meu ver, uma grande marca dos atores comandados pelo grande mestre ( a expressão de Nicholson em O Iluminado; a de Keir Dullea, no papel de Dr. Dave Bowman, em 2001; o olhar cínico de McDowell, como Alex em Laranja Mecânica), nesse “Nascido para Matar” ele eleva essa característica ao extremo, vide as expressões de medo dos soldados gritando “Sir, yes sir!”, ou na tensa hora em que o soldado já afetado por toda a pressão do rígido treinamento, está a beira de uma loucura dentro do banheiro, ou ainda, na expressão de dor da vietnamita implorando para que os soldados a matasse. Poucos conseguem tirar tais expressões de seus atores como Kubrick, sua genialidade e a sua busca pela perfeição, o melhor ângulo, o olhar, o falar mais natural de seus atores.
Fica clara a mão segura de Kubrick nessa película, ainda mais interessante, está o seu roteiro, Nascido Para Matar foi inspirado no livro de Gustav Hasford, Short Timers, extremamente peculiar a tal Diretor. Kubrick joga de forma natural humor, drama, realismo, inconformismo e, principalmente jogando na tela seu juízo sobre os horrores da guerra, sobre tão absurda situação.
A história se divide em duas, mas acompanhando a trajetória do sargento Joker. Na primeira parte, vemos um sargento rigoroso, ou melhor, sádico, preparando seus recrutas para a Guerra do Vietnã. Hartman treina seus soldados de forma implacável, com métodos assustadores. Seu bode expiatório acaba sendo o gorducho Pyle, que depois chega até a demonstrar certo entrosamento com o tempo, após ter sofrido muito na mão do chefe e dos colegas, que eram constantemente prejudicados com a falta de seriedade e preparo de Pyle. Abstenho-me de contar os detalhes que antecedem a segunda parte da trama, por motivos óbvios, quem já assistiu sabe.
Em um segundo momento, somos levados ao front de batalha, lá no Vietnã. Jocker, agora sertã correspondente de uma espécie de jornal militar eufêmico, que só publicará notícias favoráveis ao apoio do conflito por parte dos americanos que leriam. Jocker cobrirá a ofensiva do Tet, que marcou o início da derrota norte-americana. Em vez de grandiosidade épica, as cenas de batalha assemelham-se a uma tensa caçada humana, na qual as eficientes, mas alienadas máquinas de guerra norte-americanas sucumbem diante da gana de sobrevivência dos vietnamitas.
O controle do aspecto visual é imenso em Full Metal Jacket, não obstante, as interpretações são interessantíssimas. O insano comandante Hartman está interpretado brilhantemente por R. Lee Ermey (que realmente foi instrutor de um campo de recrutas e lutou no Vietnã), sem dúvidas, fica como o grande destaque do início da trama. Vincent D'Onofrio (que teve de engordar 30 kg para o papel) como o recruta Gomer Pyle, está absurdamente fenomenal, a já citada cena do banheiro, é antológica, grande parte a atuação dele. O outro rapaz, Soldado Joker, agarrado com unhas e dentes por Matthew Modine, que foi inspirado na participação no Vietnã do autor do livro no qual o filme se inspira.
Cabe, como sempre nos filmes de Kubrick, ressaltar os aspectos técnicos do filme. A brilhante Montagem feita por Martin Hunter, há uma cena interessante em que a tela está escura e é acesa gradualmente pelas lâmpadas do alojamento dos soldados. A fotografia de Douglas Milsome, que utiliza bastante o recurso do contraluz e abolindo as cores mais vibrantes, deixando o filme com um tom mais leve, diametralmente oposto ao clima da guerra, algo brilhante, e que serve para reforçar o sentido de originalidade da obra.
Enfim, Full Metal Jacket, (que é uma referência ao tipo de munição usada no Vietnã, em que o projétil é revestido por chumbo), é um retrato kubrickiano do horror que é a guerra, que mostra como o homem vem a se tornar uma espécie de máquina “nascida para matar” em que se tornam os soldados pseudo-destemidos, recrutados com o destino de tornarem-se heróis.