Era uma vez a descoberta que os filmes de Ozu tomavam o mesmo Redbull que o mestre Yoda usava para flutuar no ar. Foi um escândalo, mas a veracidade da acusação ainda é confirmada por aqueles que buscam refúgio ou terapia familiar junto o lendário cineasta, o Santos Dumont da cinemática das coisas – tangentes que compunha além da força da gravidade, mas a partir dela. Do seio familiar da sociedade do século XX, sem perturbações de períodos históricos, fora raras exceções em produções ligeiramente menores de sua filmografia atmosférica, na pirâmide de valores que é o Cinema. Grande entusiasta dos detalhes, do lado bom da vida, da intimidade retida nos cômodos de lares receptivos, em realidades lineares afetadas pelo tempo e o fluxo natural da existência humana. Na humilde de suas obras, filhas análogas nas propostas de cada uma, mas do mesmo universo de total confraternização racial, diferente de quase todos os outros cineastas nipônicos, as clássicas reverências entre os personagens são ironias contextuais ao nobre arranjo reverencial, à base de meditação no tratamento geral, e uma invejável precisão artística.
“Cada homem representa vários papéis enquanto vive“, já disse Shakespeare, contudo Ozu achou a identidade que irradiava de seu indivíduo e a propagou enquanto conseguiu, mesmo sendo a constante evolução que ambiciona expressar, e, porque não, registrar com uma perspectiva própria as variações de uma visão que sempre muda, mediante as transformações do mundo. Tal reflexão é mais nítida e autolegível pelo uso perpetuado de cinemascope e da linguagem integrada a tanto em A Rotina Tem Seu Encanto, o atestado terminal do mestre, cujo encanto do título não vem de ilusões, pois não passa de um manifesto já edificado e honrado desde o gracioso curta-metragem, quatro décadas antes, Tokkan Kozô, um trabalho preliminar e tímido de Ozu. Vertentes mais tarde no que viria a seguir, a metamorfose histórica do realizador poderia ser compreendida, fosse positiva ou não, na forma de uma verdadeira paisagem de conflitos culturais no mesmo seio familiar, mais uma vez como de praxe, capturado no que há de melhor e mais construtivo para uma história ser narrada em rápidas duas horas de projeção sensorial.
Uma das marcas registradas do “cineasta da linhagem”, eternamente homenageado por um sem número de admiradores inevitáveis (Bergman, Coppola, Wenders, Godard, Malick, Kiarostami, Haneke, Payne, Van Sant, Ang Lee...), cunhou uma das principais razões para tamanha admiração: Em Encanto, sua habilidade e serenidade de realizar um filme sem digressões de ritmo é elevada ao expoente máximo no decorrer do ofício. Não há necessidade para que haja um clímax ou situação anticlimática, pois cada cena respeita a outra e a que virá em seguida, com a harmonia e a plenitude dinâmica de um monge que nunca desejou sucesso, mas que o atingiu devido o valor da dinastia artística que produziu, quase sempre ao lado de seu parceiro, em uma das mais bem sucedidas parcerias da história do cinema com o espetacular ator Chishu Ryu, perfeito na pele do patriarca que quer ver sua filha casada, e com a segurança familiar que deseja para ela. O medo da morte e o acolhimento da solidão progressiva nos últimos anos de uma alma cansada sobre a Terra servem como componente dramático tanto quanto as cores de Ozu, agora, em prol de um simbolismo irônico e da representação cromatizada ao regozijo de estar vivo contra a morte iminente, aqui ilustrada pelas rugas de Ryu, quando de seu rosto emana o sorriso de um homem que entende de tudo, e por isso mesmo já não se importa com mais nada. Porque então se importaria tanto com o casamento de sua filha?
A investigação de Ozu conecta espaço com o tempo sem fome ou sede para chegar ao fim do arco-íris. Um cinema ilimitado por suas respostas poderem ser acessadas por nós a qualquer momento durante o privilégio de assisti-lo. Uma arte perdida que hoje em dia, devido a rapidez e a complexidade inadvertida do mundo, tenta ser resgatada cada vez mais na arte da dramaturgia, seja como sátira, seja como alternativa. Desta maneira, é correto apontar que o trabalho de Yasujiro Ozu é a definição de arte imortal, do ato de preservação e não esquecimento. Não é um tipo de cinema pouco acessível aos padrões de produção ao redor do mundo, apesar de serem épicos dramáticos e hipersensíveis que, como já foi apontado, chegam a flutuar no ar rarefeito do argumento.
Após mais de um século da existência do cinema, poucos profissionais ainda podem se dar ao luxo de ter a competência, talento ou seja lá o que for para conceber documentos de tamanha força, revestidos de uma fragilidade maravilhosa que só aumenta o brilho do produto. Enquanto Era Uma Vez em Tóquio é o testamento de Ozu para o cinema, A Rotina Tem Seu Encanto é o testamento e a síntese para o cinema de Ozu. Um filme que quando acaba, leva consigo nossos corações, e traz a saudade deste iconoclasta do que a alma humana tem a oferecer. Acaba sendo irônico quando um épico sobre as circunstâncias do tempo se torna atemporal por suas próprias circunstâncias.
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