Se nós tivéssemos sido alimentados pelas saladas de frutas de Godard ao longo de nossa infância, certamente teríamos vos degustado melhor. Digo isso porque o chefe foi um dos grandes culpados pelo contexto de uma história recortada no cinema ser fragmentado entre o lógico e o ilógico, sem compromissos senão artísticos, sem rédeas exceto às do típico bom-gosto de Jean-Luc. É um pecado declarado perguntar a razão por qualquer imagem ser detonada na tela durante a projeção de uma sessão Godardiana, pois tudo que parece natural é aleatório, não há limites para a criação, poucos foram livres nesse sentido. Talvez por isso o frio e comportado Alphaville seja olhado com desdém pela maioria dos fãs do maestro francês, a pedra mais barulhenta que ainda faz ecoar as marolas chamadas de Nouvelle Vague. Os que se julgam donos da razão do mundo, em tempos mais cínicos do que as intenções de Godard, principalmente, afirmam com uma sabedoria boêmia O desprezo que muitos merecem carregar por investigar os derivados de um cinema livre feito para libertar consciências artísticas carcerárias de um sistema rotativo à publicidade. Pois bem: Eu assino embaixo.
Que se dane a poesia, eu quero um começo até o meio, e o fim! Racionalismo pra não enferrujar o cérebro!
Os críticos que gritavam isso, se aproveitando de uma falsa liberdade democrática, tentaram em vão escrever também uma receita para Godard, o limitando como extremista de uma geração fadada ao fracasso de movimentos que vinham do nada e iam para incógnitas ainda mais indecifráveis de um futuro imprevisível demais. Godard sempre deixou claro que não é diretor de cinema, é um poeta excomungado procurando eterno abrigo na arte sequencial, tal qual Cazuza, Truffaut, o Picasso da era cubista, e tantos outros que sofreram impeachments e procuraram refúgios em outros sítios até o semi-óbito. Ou, ainda, as palavras que eram redutivas demais, o mesmo argumento que Fritz Lang usa, na premiere de uma obra fílmica mal interpretada, para com um produtor revoltado de características iguais as apresentadas no final do primeiro parágrafo.
O desprezo é um filme ofegante que nos permite respirar de alívio. Produto filho de uma mente que não reinventou a roda, mas ajudou a calibrar os pneus de um indispensável inconformismo na mesma estrada secular por onde passaram Eisenstein, Welles e Kurosawa. É um longo e elegante clímax sensorial além do certo e errado. A partir da declaração de Glauber Rocha em que “O cinema é a lata de lixo das belas-artes”, e da de Godard: “Sou um pintor de letras, quero entrar na caverna de Platão iluminado pela luz de Cezánne”, esse então é um raro caso em que esse escritor se recusa a apresentar a trama desta obra á leitora, ou estaria também tentando traçar uma receita em vez de fazer o leitor curioso pôr seus sentidos no fogo e ir conferir por si só. Para os familiarizados na filmografia Godardiana, outorgo o óbvio: Temos aqui o mesmo desajustado existencial de sempre, acompanhado por uma bela e aparentemente passiva companheira complementar (Bardot, imperdível) em ambientes mistos de Antonioni e Tarkovsky. E para os virgens de Godard, fica no máximo o adjetivo insinuoso entre parênteses.
Evitar se entrelaçar no subjetivismo monocromático do irmão mais novo de Pierrot le fou... Não... A vida é curta demais se a escolha é não ficar engajado no raro misticismo colorido de O desprezo. E é por essas e por outras que Godard ainda vai te achar desprezível, a menos que você seja uma criança, é claro.
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