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Ilha das Flores

(Ilha das Flores, 1989)
8,4
Média
636 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Corpo estranho, mas característico

10,0

A produtora de cinema independente Casa do Cinema de Porto Alegre figura, ainda hoje, como um momento único na história do cinema brasileiro. Realizadores, produtores, montadores e roteiristas quebraram com uma tradição de Rio-São Paulo e Nordeste com filmes que exibiam uma criativade vigorosa e inventiva com abordagens no mínimo diferenciadas para abordar as questões sociais tão vitais para o cinema e a arte brasileira (que, admitamos até nos produtos mais leves - como humorísticos semanais - se baseia fortemente em arquétipos da sociedade). E o diretor Jorge Furtado se destaca à frente da Casa (primeira instituição premiada em Gramado) muito por conta da singularidade de seu documentário em curta-metragem Ilhas das Flores

Misturando inscrições, imagens de arquivo, um tom no limite entre o didatismo e o sarcasmo, o filme cria uma relação causal a partir de um tomate e suas implicações sociais, tanto os que são servidos em mesas de família de classe média quanto os desacartados para ilhas de sucata, porcos e, finalmente pessoas pobres, últimas na "cadeia alimentar" de uma lógica de produção que é questionada através do didatismo justamente porque sabemos do que o filme está falando, mas a forma como todos testem\unhamos a questão da pobreza desumanizante de maneira acrítica e amorfa é porque parecemos não entender. E nesse caso, o filme surge, justamente, como uma investigação do estado das coisas.  

Tido pela Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine) como o melhor curta brasileiro de todos os tempos, Ilhas das Flores e o diálogo que imagens e sons se descrevem mas também se contradizem uma construção dialética em que som e imagem não apenas produzem sentido mas também o põem em cheque. Furtado admitiu as influências tanto de Kurt Vonnegut em Café da Manhã dos Campeões quanto do diretor francês Alain Resnais (Hiroshima, Meu Amor). O flerte do cinema brasileiro tanto com a literatura pós-modernista (uma longa tradição que vai de Ulysses, de James Joyce a A Graça Infinita, de David Foster Wallace) quanto com a nouvelle vague francesa, ou mais especificamente o movimento "Rive Gauche" (margem esquerda do Rio Sena) de Alain Resnais, Chris Marker (La Jatée) e Agnés Varda (Sem Teto, Nem Lei) criou um novo paradigma na década de oitenta, rompendo tanto com a tradição mais neorrealista do Cinema Novo (influência confessa em Vidas Secas, por exemplo) quanto com uma herança do teatro expressionista de Nelson Rodrigues presente tanto no "alto clero" (como Toda Nudez Será Castigada, de Jabor) quanto em filmes mais marginais e populares (A Dama do Lotação, de Neville D'Almeida).

Alguns podem dizer que o cinema brasileiro já vinha flertando com siso com o movimento conhecido como cinema marginal (ou udigrúdi) e os filmes da produtora Belair, como Rogério Sganzerla e Júlio Bressane fizeram em O Bandido da Luz Vermelha e Matou a Família e Foi ao Cinema, respectivamente. Mas ainda eram trabalhos sumariamente de ficção. Tudo no cinema acaba tendendo a ser ficção (ou uma narrativa aos moldes de uma), mas há a presença de personagens, como O Bandido, Ângela Carne e Osso em A Mulher de Todos, Barão Olavo, O Horrível ou mesmo Os Monstros de Babaloo. Como acontecie em Banda à Parte de Godard ou na Nova Hollywood em filmes como Quem Bate à Minha Porta?, de Scorsese, ainda havia um fio de representação, de atores, de narrativa de personagens sendo seguida, em ritmo de ficcionalização pós-moderna.

Ilha das Flores foi por outra via. O filme existe como uma análise de narrativas, ou seja, um questionamento e uma desconstrução do que contamos a nós mesmos sem questionar sua causa última; a "montagem" que existe por trás de cada ideia que compramos e repetimos, como uma associação de ideias que codificam um certo sentido de valor. Um favorito de analistas sociais e professores, a obra de Furtado é antes exemplar de um cinema preocupado em investigar justamente a combinação de dois sentidos propostos e porque eles são aceitos; o poder retórico do discurso guiado pode ser muito convicente; já um discurso questionador parece acabar invisível por trás de afirmações inflamadas.

Como filme encaixado na tradição pós-moderna, Furtado não se acanhou em ser tão intertextual quando pudesse; tudo pode ilustrar as ideias de Futado, desde poses em estúdio, objetos cênicos passando por captação da realidade nua e crua, inscrições de intertítulos provcativas ("Deus Não Existe") ou citações de autores famosos como Cecília Meirelles ("Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda"). É, enquanto exercício de forma, também um exemplar de que se o cinema estreitou relações ente representação e representado, entre realidade contada e realidade objetiva, também confundiu as linhas entre documentário e ficção, entre registro e composição; ora, como é possível concluir da relação causal, tudo é discurso, montagem, elaboração, tessitura que soa harmônica ou desarmônica. 

O cinema brasileiro já havia experimentado uma narrativa mais aberta em Limite, de Mário Peixoto, um tanto apagado pela história que preferiu as narrativas mais sociais e impactantes de Humberto Mauro (Ganga Bruta). Não dá para dizer que Furtado retomou o impressionismo de livre associação à là Jean Vigo (Zero de Conduta); como obra única, assim como seus outros curtas como a fantasia urbana e cultural de Barbosa, que investiga o trauma de uma geração no pico de sua autoestima quando o goleiro do título tomou o tento do Uruguai no famigerado Maracanazzo ou a construção ao mesmo tempo humorística e violenta que desmonta instituições de poder em O Dia Que Dorival Encarou a Guarda, o filme analisado em questão surpreende pela tensão provocada pelo inusitado, ou seja;  onde o autor quer chegar com isso? A forma como desmonta nossas narrativas segue quase um caminho inverso, não de aspiração, mas de frustração: nada é o que pensávamos ser.

Um tomate pode nos levar a concluir que a vida é injusta, pois sabemos que é um fruto selecionado para o consumo humano, mas quando descartado, pode servir para porcos e depois para humanos pobres. Em uma reflexão que cerca conceitos como liberdade de escolha e consumo e como tais escolhas são eminentemente infuenciadas por recursos disponíveis e adquiríveis e como tal privilégio de liberdade é negado a pessoas iguais, tal linha de novelo puxada por um cineasta curioso pavimentou algumas gerações de cinema. Furtado e a Casa de Cinema escreveram um capítulo entre o Cinema Novo, a Pornochanchada, a Embrafilme e a Retomada com filmes que não eram em nada parecidos com o que víamos mas que demonstrou mais uma forma do brasileiro olhar para a sociedade e pensar em seu sentido, em como ela chegou até ali. Pondo em cheque tradições estéticas do cinema brasileiro e criando a busca por uma particular, Ilha das Flores é essa tal desconstrução temática e estética única em nosso cinema, habitando um espaço de curiosidade, fascínio e influência ainda instigante trinta anos depois.

Texto integrante da série Clássicos Brasileiros

Comentários (1)

Ted Rafael Araujo Nogueira | sábado, 07 de Dezembro de 2019 - 23:57

Filmão da porra. Uso ele quando desenrolo oficinas de documentário. Funciona bem demais com a galera.

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