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Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver

(Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver, 1967)
7,5
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Críticas

Cineplayers

Selvageria erótica na tortura de uma carne arrumada em suplício

10,0

Josefel Zanatas. O Zé. Escapa do ataque dos mortos no À Meia Noite Levarei Sua Alma (1964) e continua sua perseguição atrás da fêmea perfeita a qual venha a gerar sua prole na perpetuidade do sangue. Numa repetição eterna do objetivo buscado. Com direito a torturas, num arroubo pré-torture porn com mulheres sofrendo a contento, devido ao que era permitido pela época e pelo orçamento que havia. O maléfico mantém seu tom controlador moral, impondo-o aos transeuntes da sua cidade. Agora, contudo, Zé conta com um modus operandi mais metódico (com ajuda de Bruno, assistente corcunda no esquema Frankenstein), numa espécie de epistemologia arrumada do macabro. E é nesse sistema que o filme é desenvolvido.

O apavoro da população continua no retorno do mito. Chega na cidade sozinho, com os transeuntes fugindo no medo. Os inferiores vão descobrir a verdade, ele afirma. Seus discursos seguem afiados e virulentos. Firmes nas exasperações contra o povo imbecilizado crente na imortalidade do espírito. Há mais espaço para a verborragia que, obviamente, é gasta com vontade tendo os alvos usuais a aloprar. Crendice religiosa e a moralidade adquirida são alguns deles. Porém há aqui um material mais sofisticado, com espaço para bater no coronelismo até. A força deste coronelismo nos interiores, com os poderosos comandando a cidade e protegendo os seus. O verdadeiro controle? Corrupção e patriarcalismo na pista. Acusam e ameaçam o coveiro mallograda sua chegada. O próprio já aparece e instila medo na população. E logo os indaga solenemente: “Por que o Zé do Caixão é culpado? Por ser diferente? Por não ter o mesmo credo?” Espécie de comentário moral, o qual já havia sido registrado na obra anterior, acerca dum medo do desconhecido. “A palavra do senhor coronel responde pela sua inocência", responde ao Truncador, outro suspeito, mostrando aceitar o desafio contra o Coronel. O que nos leva aos mais variados entrelaces e deboches por parte do nosso sepultureiro.

O cara entra na festa do Coronel na qualidade de penetra, maroto, embaçando a farra dos abastados. O animal é o mal encarnado batendo de frente com o domínio elitista em conluio com o atraso. Zé representa o desafio, e, como tal, vincula seu poder a um objetivo brutal contra aquele bando. O fato de eles seguirem tal torpe liderança só coaduna com o discurso sobre estes fracassados que ele acusa. Mas não há aqui qualquer bálsamo de libertação do atraso para aquele povo. O fiasquento luta contra um poder de elite, porém, vencendo ou não o povo, continuaria ensebado na sua decadência moralista. E não seria o enterrador que os tiraria dessa. As ações dele prometem um recauchute de revertério futuro para si, isso sim. Os propósitos se mantêm, mas os problemas são mais complexos. Em bom cearês, os populares anestesiados que se lasquem. Temos nisso exemplo tácito de que eu discutira no artigo, primeiro segmento desse Especial Zé do Caixão, Parte 1: O Monstro Descordial. Que trata sobre o Zé em combate ao homem cordial explicitado no livro Raízes do Brasil, por Sérgio Buarque de Holanda. Citando porque maroto eu também sou.

O corpo sempre teve alta importância para o terror com seu desmembramento servindo ao cinema, e aqui é a destruição dele sob moldes imemoriais. O Mojica veio com esta prerrogativa na primeira metade dos anos 60. O processo, a procura, a geração do prazer, não só dos personagens, mas de um público que ansiava por isso. A quebra moral pela nudez e pela violência numa sociedade carola, onde o corpo está na pauta. A sangria continua. Principalmente em ambiente de crescente paranoia, tal qual era a Guerra Fria e a própria ditadura militar no Brasil — esta última já começara a embaçar certos elementos do cinema nacional. Então qual local melhor para florescer uma boa putaria e bestialidade quanto o cinema? Principalmente junto a certo controle social e insegurança geopolítica e nacional. Ora, precisava-se de uma válvula de escape. Nada melhor que expor o corpo sensualmente, mostrando aquilo que a sociedade considerava libidinoso. O tesão pelo proibido.

Temos seis beldades sequestradas por Bruno para o seu patrão, e daí se seguem as diversas torturas, com destaque para a cena das aranhas e a outra das cobras. Uma gênese paleontológica do torture porn. E esta perpassa com elementos clássicos, tais quais relâmpagos e trovões debaixo de chuva, assim somados às carnes supliciadas em agonia. Planos de conjunto, poucos cortes, adequam várias sequências. Esta escolha consiste num passear da câmera sobre estes físicos, em agonia, com bastante parcimônia e sem subterfúgios. Isto açambarca um misto de cinismo e crueldade. Sadismo até? Pouco caso na morte das mancebas, já inferiorizadas. O desespero e o prazer. O prazer da flagelação. E o número de cidadãos que acham aquilo um puta tesão. Mas toda esta algazarra voluptuosa e selvagem poderia cobrar um preço. As coisas podem tender a se ajustar. O círculo vicioso da esculhambação não falha.

Aqui um comentário interno abrupto. A raça superior. Seria o Zé do Caixão um eugenista? Provavelmente o diretor nem soubesse que porra fosse essa à época, mas impôs a seu personagem o mote citado. Mas é interessante notar o jeito que a ideologia dele é concatenada. A eugenia como proposta mostra a raça superior – tal qual fizeram os nazistas com a raça ariana – dentro de uma perspectiva do estado programado para tal intento institucionalmente. E o Zé é um combatente às instituições que o cercam. Ele as esculhamba. Então, fica a permanência do pensamento e ação numa busca pela perpetuidade deste sangue extraordinário, mas enquanto algo interno e idiossincrático à imortalidade do próprio Zé. Sem arroubos dominantes totais sobre quaisquer coletividades por outras formas de controle hierarquicamente preservadas.  Ele quer se impor sobre os atrasados (os alcunha como fracos) de forma a justificar e manter sua linhagem. Obviamente seu método acaba mantendo certo controle moral em conflito diante daquele povo. Um meio a se chegar aos seus intrínsecos fins. As mortes existem como a contribuição para com a causa, onde a hipocrisia do caráter merece a morte. Radicalismo abominável, mas internalizado, coisa que viria a somar com o acachapante fim a esperá-lo.

Agora com mais recursos financeiros – pero no mucho –, o cara propicia a espantosa cena alucinatória do inferno colorido e congelado. Como filmar um inferno crível visualmente e com recursos limitados? Vamos congelar o mesmo e aloprar nas torturas, e manter o escroto escorregando surpreendido nesse local colorido do pavor. Mostra, novamente, tal e qual um mestre para solucionar as coisas com pouca grana e muita inventividade. Ele era o cineasta da invenção. Temos o passeio pelo que Josefel Zanatas já fizera em vida, todos os crimes. Olha a si mesmo no inferno, numa cópia visual de si ainda mais escrachada. A rir daquela realidade. Uma projeção do destroço causado. O ataque à sua consciência, e a usa num combate dispondo da razão ao afirmar, aos clamores e berros estridentes, que tudo aquilo é mentira. Mas aqui mora uma irônica constatação. Zé é um cara que não dá tréguas a absolutamente ninguém. Por ele, as mulheres desfalecem lentamente, tais quais serpentes a rastejarem no encalço do perdão por sobre pecados que elas mesmas não cometeram. Por isso, nada mais justo seu pesadelo o perseguir ferozmente. Dentro e fora dos seus sonhos. É o mal indispensável àquele que o comete. Isto não é um moralismo subsequente ou algo que o valha, mas sim uma junção consequencial num universo escroto. Absorto em poder e desgraça. O fedor do próprio sangue também faz parte da existência. O som do inferno, gritaria e chicotes. Tormento pelas desgraças. Indo e voltando.

Planos-sequências. No palavreado com as mulheres, tem um bem longo, lotado de ameaças e verborragia. Mojica já gosta destes planos, seu fotógrafo habitual Giorgio Atilli também, e ambos demonstram toda a noção de espaço e tempo a se usar no horror. O comandante exige a junção entre iluminação, escolha dos planos e sua própria atuação. Os ótimos movimentos de câmera seguem o coveiro num sermão tétrico e sinistro, moldando seu tamanho em relação às patroas torturadas. A câmera serve ao monstro. Diminui as vítimas e engrandece o medo vivo, afirmando, plenamente, o domínio monstrengoso iconoclasta pelas suas ações e falas. Lembremos também da montagem do Luis Elias colaborando em conluio criminoso nisso tudo. Trazendo o tom de ação e consequência exalado pela fita. Desde os cortes entre o enterro do filho do coronel, intercalando com Zé na putaria sexual com a mulher do primeiro, ao escroto fim do coveiro no cemitério com os transeuntes em seu percalço enquanto foge. Esquema de perseguição por atos perpetrados. O cinemão do Mojica é rico por ter toda uma técnica bem ajambrada. Toda capitaneada pelo malandroso.  

Zé procura e Zé acha. O filme age numa ação consequencial sobre todos os atos do funesto sepultureiro, tal qual a fita antecessora também já assim esboçava. Ele afirma nada crer e a todos desafia; esta falta de credo condiciona suas ações ao radicalismo horizontal. A todos ao seu redor. Toda esta celeuma acaba dando-lhe a oportunidade de seu intento, um filho, finalmente a imortalidade. Já que a prole iria nascer, sua existência ainda teria objetivo? Somente pela garantia da sua cria vir a existir. Zé acaba por ser atacado violentamente por sacripantas enviados pelo Coronel, e contra-ataca na maior brutalidade. É o Zé no pântano, matando inferiores, aloprando os matadores. A cidade vai atrás da besta-fera ao descobrir as mortes das fêmeas e até do filho do coronel. A morte persegue o maroto. Chegamos ao zênite da desgraceira, no qual a arremetida popular contra o maldito é expressa pela montagem e câmera, algo já citado anteriormente, numa espécie de deambulação imagética de um mito sendo alcançado e enfrentando de volta. Acossado por uma turba querendo vingança sim, mas com o mal consciencioso que o acomete o perscrutando. Com direito a um contraplongée sensacional do Zé, um padre e a cruz, retratando bem o contraditório desta relação escrota. A desgraça o busca, e nisso os planos o seguem trôpego pelos matos, numa perseguição invisível mas com o fétido odor do fim entrecortando com o povaréu sedento. Como um bruxo a ser extirpado. Neste estraçalho encontramos o expressionismo na atuação do cara. A força bruta do absurdo nas feições de uma lenda ao interpretar um monstro. Humanos antes enfurecidos, estáticos ficam, não saem do canto. Zé ante o ataque ainda os desafia. “Mudem o meu pensamento." A convicção junto dele, mesmo quando perturbado e agravado pelos esqueletos os quais ele secara e que o perseguem ao fim. Temos a já conhecida história da censura fazendo o Mojica redublar a parada, propondo que o cara virasse cristão ao fim. Só assim o filme seria exibido. Algo plenamente corrigido em sua continuação 40 anos depois, mas aí são outras esculhambações. Sabemos bem que o animal manteve seu discurso até a lama lhe cobrir. Isto que interessa.

"Se fores ao céu, manda lembrança aos anjos, mas se o teu fim for o inferno, dá meu endereço ao Diabo."

José Mojica Marins, O Zé do Caixão.

Texto integrante do Especial Zé do Caixão

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