Saltar para o conteúdo

Cabra Marcado Para Morrer

(Cabra Marcado Para Morrer, 1985)
8,6
Média
214 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Vinte anos depois

10,0

Não é difícil ou raro, de maneira alguma, que as circunstâncias da História encontrem as circunstâncias do cinema. Muitos bons filmes são feitos dessa matéria histórica. E vemos isso acontecer desde o cinema independente, temática e formalmente engajado com pautas políticas contemporâneas, até as principais produções de Hollywood, quando apostam em uma boa leitura do presente. Mas também acontece – e esta já é outra questão, totalmente diferente – de um filme ser interrompido pela História. E é este segundo caso que precisamos reconhecer para falarmos de Cabra Marcado para Morrer (1984).

Em 1962, João Pedro Teixeira, liderança das Ligas Camponesas, no estado da Paraíba, é assassinado. Na mesma época, a UNE Volante, de que o então jovem documentarista Eduardo Coutinho fazia parte, atravessava o Nordeste brasileiro registrando as contradições entre o subdesenvolvimento e o imperialismo, segundo as expressões usadas pelo próprio grupo. Pouco tempo depois, Coutinho dá início à direção de um filme que reencena a vida de Teixeira e as circunstâncias que levaram a sua morte. Em 1964, esse filme é interrompido.

Vinte anos depois (como nos indica o título da obra em inglês, Twenty Years Later), Coutinho volta para a produção não terminada e decide buscar os atores que trabalharam com ele na época e que então faziam parte das Ligas Camponesas. Essa não é, no entanto, a história sobre um filme. É a história de um filme, no que Coutinho transforma esse processo de recuperação na matéria-prima do documentário Cabra Marcado para Morrer. Este trabalho, no entanto, é completamente construído à sombra do período em que não existiu filme nenhum, é sujeito desse hiato. Esses “vinte anos” dos “vinte anos depois” – do título internacional – têm um nome, e esse nome está marcadamente presente através da obra.

A Ditadura Militar, que teve início em 1964, começou a se flexibilizar em 1979, com a presidência de João Batista Figueiredo e a Lei da Anistia. Foi a Ditadura que interrompeu Cabra Marcado, e o fez de diversas formas. Primeiramente, determinou o encerramento da primeira tentativa de produção, nos anos 1960. E, por fim, interrompeu-se sobre o filme, como uma cicatriz que o atravessa. Entre esses dois gestos de interrupção, no entanto, há um outro (ou muitos outros), guardado pelo hiato que assombra a obra e a nomeia. Refiro-me ao conjunto de eventos que caem sobre a vida dos personagens e alteram as suas rotas, fazendo com que Coutinho os reencontre em outros lugares, como outros sujeitos, diferentes daqueles a quem ele foi uma vez apresentado (vinte anos atrás, como esse marco temporal se faz sempre presente).

A trajetória de Elizabeth Teixeira demonstra, melhor do que qualquer outra, essa interrupção de Estado na vida dos personagem. Viúva de João Pedro, Elizabeth interpretava a si mesma na primeira versão de Cabra Marcado. Coutinho a reencontra na clandestinidade, habitando outra cidade e atendendo por outro nome. Ao receber Coutinho e, principalmente, ao se deparar com o material filmado há 20 anos, Elizabeth recupera o seu próprio nome e o do marido. Na despedida entre ela e Coutinho, essa se revela uma recuperação também ideológica, quando Elizabeth se aproxima do diretor para confidenciar a ele sua falta de fé na abertura democrática.

O documentário que resulta desses processos, interrupções e tentativas é não apenas um dos principais títulos brasileiros como também do gênero em todo o cinema. Este é um testemunho possível das dificuldades de se colocar a História em cena, quando é a própria História que agencia o que pode ou não ser encenado, que interrompe narrativas e as atravessa violentamente. Cabra Marcado para Morrer encontra, no rosto de Elizabeth Teixeira, frequentemente, uma posição para o filme: o passado, em ambos, está sempre reconhecido, presentificado, enquanto a postura é dirigida a uma reorganização de forças para o enfrentamento do presente. Mais de vinte anos depois esta é, ainda, uma postura urgente.

Texto integrante do especial Baú dos Clássicos
Partícipe do especial Clássicos Brasileiros

Comentários (4)

Igor Guimarães Vasconcellos | quinta-feira, 28 de Maio de 2020 - 05:03

O processo da realização adentro da história e no ritmo da história( ou da interrupção da história).
Massa, Cesar!

Ted Rafael Araujo Nogueira | quinta-feira, 28 de Maio de 2020 - 15:49

Historiadores trabalham com fatos, fontes e os diversos cruzamentos destas últimas - principalmente com as contraditórias - mediante o recorte escolhido e a bibliografia apresentada, porém o silêncio histórico é ensurdecedor. Ele grita. Clama e esculacha. O bom observador da história entende bem o silêncio. Busca escrutina-lo a contento. Por isso os vinte anos de interrupção da obra são sintomáticos. E a retomada do processo é importante neste sentido. Escutar daquelas figuras o que significou esta lacuna. Filme sensacional.

André Araujo | sábado, 30 de Maio de 2020 - 17:44

Aquela cena em que os lavradores se veem nos filme antigo é pura poesia.

Herbert Engels | quinta-feira, 11 de Junho de 2020 - 13:14

Eduardo Coutinho é um cara que faz falta :(
Ainda mais por que ele era, na opinião pessoal, o maior cineasta do audiovisual brasileiro na época.

Pior foi o cinema ter perdido não apenas um, mas dois titãs no mesmo dia (ele, e Philip Seymour Hoffman) .

Faça login para comentar.