Ultrapassar a barreira do que é considerado correto é perigoso. Principalmente quando estão envolvidas várias gerações e seus cultivados costumes e tradições, a fatalidade parece habitar todos os lugares para quem ousar caminhar ao contrário da direção dos costumes tão cegamente cultivados. Esses que tanto determinam a vida de sociedades inteiras e separam o certo do errado, o que deve ser aplaudido e o que deve ser repudiado. Não é difícil ver o estrago dos tradicionalismos em cada sociedade, em cada família, em cada país ao redor do mundo, inclusive na nossa pátria amada onde o Estado deveria ser laico e justo, mas é descaradamente evangélico e preconceituoso. Como dizem os sábios, ignorância é uma benção. Deter a onda de conseqüências de se manter costumes e pensamentos medievais incabíveis aos dias atuais é um ato corajoso, mas mortal. É nessa situação onde os prejudicados encontram suas duas possíveis escolhas: Continuarem a serem oprimidos e levarem uma vida cercada de medo e frieza, ou levantarem a voz com força e correrem o risco de se viver numa perigosa transgressão igualitária.
Compreendendo completamente o material que possui em mãos, o diretor David Fincher resolveu fazer de seu novo trabalho um discurso visual, direcionado aos diversos tipos de conservadorismo, de total urgência para um mundo que cada vez mais se moderniza e liberta. Como de costume em algumas de suas obras anteriores, a crítica alarmista inserida numa análise cheia de realismo e violência se faz muito presente em “Millennium”, seguindo a veia de denúncia de “Clube da Luta”, mas neste dirigida aos homens urbanos sufocados por uma fúria reprimida. Adaptando a primeira parte da trilogia literária de Stieg Larsson, que, movido pelo abuso de mulheres que presenciava e pelo estupro coletivo de uma jovem chamada Lisbeth, resolveu colocar no papel e inserir numa trama policial o seu próprio inconformismo e ativismo em defesa das classes sociais reprimidas, nesse caso, as mulheres, o diretor acabou por tornar a sua versão da história num eletrizante filme, cercado de pontos que se convergem em direção a interessantes ideias.
O maior acerto do longa, provavelmente, é o de construir uma exímia atmosfera de frieza e crueldade, de ameaça invisível. A viagem proposta por Fincher pelas mais mórbidas revelações, de estupros dentro de famílias, de subjugação da mulher, de corpos enterrados pela intolerância, de toda a sujeira maquiada por uma sociedade esnobe, de elite intelectual e indubitavelmente doentia é construída com alta perícia técnica. Desde a trilha sonora hipnotizante (a música dos créditos iniciais, originalmente composta pela banda de rock Led Zeppelin, ganha um tom punk e energético que, em união com as imagens, transforma-se em algo fantástico), a incrível e gélida fotografia de Jeff Cronenweth - com quem Fincher já trabalhou em “A Rede Social” – até a ótima condução de atores, que rendeu para Rooney Mara sua primeira indicação ao Oscar, tudo está em impressionante simultaneidade para que o espetáculo se torne completo.
Por querer manter o nível de detalhismos e tramas de um livro com mais de quinhentas páginas, o ritmo da obra cinematográfica se torna ágil e rápido, algumas vezes até demais. O começo, principalmente, apresenta os personagens de forma corrida e pouco se entende da acusação de blasfêmia ao qual Mikael está sendo acusado, mas logo a velocidade se torna acertada com o início do caso dos Vanger, exigindo uma atenção extrema para todas as partes que compõem a investigação ficarem claras. Assim como outros longas do diretor, esse não apresenta um desenvolvimento fácil de acompanhar, mas prende o espectador já mergulhado naquela teia de mistérios irresistível. Pra quem nunca leu os livros ou viu a versão sueca, tenderá a uma maior dificuldade em absorver todas as pontas, mas rapidamente elas vão se conectando num único caminho.
Em relação aos personagens, se em “Clube da Luta” Tyler Durden é o personagem-símbolo, ou seja, o mais trabalhado e aquele que estampa a essência da trama, aqui ele é substituído por Lisbeth Salander, interpretada por uma promissora Rooney Mara. Uma personagem de estranhamento visual, mas de concordância ideológica, de atitudes radicais em prol de seu próprio bem, mas de benefício geral, é simplesmente complexa. Ela não defende comunidades humanas específicas e não anuncia para todos que irá cortar raízes, ela simplesmente as agarra por motivos pessoais e as rasga. Ela não é uma feminista, mas é um ícone de feminismo. Grande parte do motivo de toda sua fama é significar a batalha de determinados grupos sociais na conquista de seus direitos e respeitos, a negação em serem submissos e aceitarem qualquer tipo de violência que esteja associada ao grupo ao qual fazem parte, a força violenta em dizer basta e cobrar dente por dente. Com seu visual punk, gosto acentuado pra sexo e olhar forte, é uma das grandes anti-heroínas que o cinema já criou.
Já se passaram séculos e séculos de construção de direitos humanos e avanço intelectual, mas ainda se observa o quanto as mensagens do autor e do diretor são necessárias. Após ultrapassada a primeira impressão, de pessoas respeitosas, ambientes calmos e famílias equilibradas, passamos a cada vez mais afundar nas camadas mais profundas, de ilegalidade, segredos brutais, violação física e moral, muitas vezes nascidas de costumes radicais e anti-éticos seguidos a tempos. O fato dos assassinatos serem contextualizados em citações bíblicas (que prega misoginia, xenofobia, racismo, homofobia, infanticídio, entre outros) e famílias tradicionais, nesse caso, suecas, preservarem veias nazistas só explicita o quanto a intolerância ainda se encontra enraizada nas bases de diversas sociedades, com ideologias ultraconservadoras tão frias, desumanas e inadmissíveis de serem postas numa sociedade moderna que busca a igualitariedade, que só poderia mesmo ter seus seguidores isolados numa ilha, de representação física e metafórica. A denúncia, a atmosfera de urgência e a forte reação contrária anunciam que ainda há muita sujeira para ser limpa. Não há mudança se não houver sangue derramado.
“Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres” não deve ser visto apenas pela curiosidade de uma adaptação literária ou remake de um filme estrangeiro, mas pela viagem incrível de crueldade e adrenalina com sérias mensagens exalando a cada minuto. O ritmo explosivo e a violência explícita só exaltam a urgência instalada na obra: É hora de despertar o dragão, e não deixá-lo morrendo numa torre. Num mundo cada vez mais avançado e tecnológico, simplesmente não há mais espaço para ultraconservadorismos e rebaixamento de classes, já que atrasam de forma direta o desenvolvimento das mais variadas sociedades. O sangue da justiça tem que ferver. Se em meados de 2004 as idéias de Stieg Larsson eram apenas reconhecidas em certas partes da Europa, hoje suas criações atingem o mundo inteiro, numa intensidade que só quem desejar fechar os olhos, não conseguirá se sentir mudado por uma avalanche brutal, mas de essência fascinante.
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