Antes de mais nada, é sempre necessário lembrar que a assimilação artística cabível à qualquer apreciador varia muito conforme a mentalidade individual. Ressalto esse fato, pois assim como qualquer outro exemplar da filmografia de David Lynch, este aqui propõe uma experiência essencialmente sensorial; em outras palavras, assistimos e, ao mesmo tempo, nosso inconsciente realiza um trabalho de captação visual que busca todas as memórias que já tivemos durante nossa vivência e às une ao que é mostrado na tela causando assim uma série de sentimentos que consequentemente terão diferentes impactos em cada um. Diria que trata-se de uma forma de exposição áudio-visual especialmente única; provinda de uma liberdade criativa imensurável de Lynch. Que, inclusive, põe abaixo qualquer tipo de tentativa de padronização do sistema cinematográfico deste diretor, já conhecido por ser adepto de um estilo exclusivo; mas que aqui alcança ápices até então inimagináveis; e propõe até mesmo uma revolução no modo de realização desta arte.
Acho um ato deveras irrelevante o de ficar procurando significados que estão ali naquelas imagens mas implícitos por camadas de subjetividade. Até mesmo por que o próprio Lynch já concedeu entrevistas em que concordou com todas as teorias demonstradas à ele; e muitas que sequer têm uma relação lógica em comum. Ou seja, todos os acontecimentos apresentados em cena são de propriedade interpretativa do próprio espectador. Na verdade, nem há uma necessidade de tecer argumentos filosóficos mirabolantes acerca do que supostamente o diretor pretendia; pois o que realmente vale é o exercício sensorial repleto de onirismo. Uma verdadeira viagem em que a embarcação só deve ser alertada de que deve desligar o modo racional; e deixar que o inconsciente trabalhe contemplando uma mixagem hipnótica de som e vídeo.
É promovida uma profunda imersão ao inconsciente da personagem de Dern. Tudo está misturado; como se os devaneios escabrosos da atriz fossem uma continuidade de seu trabalho na refilmagem polonesa. É no mínimo atormentador; imaginar que Dern fosse capaz de confundir a perceptividade da realidade entre o mundo em que vive com o da persona adotada no filme o qual está atuando. Quanto mais densamente a atriz se entrega ao papel, mais a noção de tempo/espaço vai sendo diluída em um mar infinito de insanidade. Ela sofre uma perda de identidade; tendo seu cérebro sendo literalmente triturado através da confusão existencial em que sua alma se encontra. Digo alma, por que o resto todo já foi jogado ao céu e as estrelas; essa é a única característica que ainda resta daquela Dern que nos foi apresentada no princípio.
Se em Cidade dos Sonhos Lynch tinha um pingo de sanidade mental e até mesmo piedade, aqui ele não dá mínimas chances para que possamos escapar de seu sonho maldito; que nos suga desde os primeiros minutos e nos leva à um ponto em que estamos já completamente mesmerizados pela natureza macabra da película. É até repetitivo elogiar mais uma vez os trabalhos de climatização do diretor; mas impossível não faze-lo principalmente aqui. É over. Parece que Lynch esperou toda sua carreira pra expor, ou expurgar de sua mente, todas as possíveis assombrações que por lá permeavam. E ainda por cima, em dados momentos, utiliza recursos psicodélicos que brotam e amplificam uma sensação desconfortante no espectador. Sempre com cortes desconexos propositalmente para darem impressão de que estamos enfrentando uma porção de pesadelos intermináveis.
Há ainda quem diga que sentiu ter assistido à pelo menos quatro filmes dentro de um. Número que, segundo Lynch, reflete a quantidade de papeis interpretados por Laura Dern. E a atriz diz ter feito três. Sinceramente essas estatísticas nem vêm à minha cabeça após o término de projeção; o que sinto é ter acabado de acompanhar um elenco extremamente afinado, depositando toda sua capacidade dramática em um projeto que desconhece suas proporções. Ninguém sabe o que está representando. É uma trama dentro de outra. O cinema sendo construído e desconstruído instantaneamente com uma contracultura à padronização hollywoodiana; ou até mesmo fora do circuito comercial. Generalizada. Personagens são colocados timidamente em alguns planos; para posteriormente exercerem um papel homérico e definitivo, que chega à chocar. Como em um sonho; às vezes parece tudo embaçado e, em uma reviravolta inesperada, alguns elementos clarificam-se.
Provavelmente Lynch nunca explicará o que o fez esperar tanto tempo pra realizar sua obra-prima definitiva. Nem ele mesmo sabe; deve ter sido questão de surto criativo. O fato é que ele pariu sua mais ambiciosa engenhoca. Imune à qualquer espécie de definição coerente; que existe para o agrado de um público relativamente pequeno, pois é a que mais teve influência pessoal do diretor na realização; concebendo, assim, uma arte que nunca poderá ser amplamente acessada por quem busca razões onde, na verdade, existem emoções. Todas elas repassadas à nós com maestria; em grande parte pelo trabalho de Dern, que representa uma multiplicidade insana de papeis com um domínio incrível sob seus personagens. Ruim para os coesos, que acabam perdendo a chance de se deliciarem com o mais sufocante universo desse cinema ilimitado.
Nao acredito que esse texto foi escrito há mais de um mês e só agora foram aprovar 🙄
A média de espera para aprovação dos comentários vem sendo de 30/40 dias mesmo...
Lynch é foda! Baita filme e baita texto. O cinema de Lynch é muito rico. Há tempos quero escrever sobre Eraserhead, mas sempre acabo tendo uma visão diferente da anterior.