Uma das grandes peculiaridades do cinema de Kiyoshi Kurosawa são os seus plot twists propositais, que fazem com que seja atribuída uma autenticidade ímpar às suas obras. Não que esta característica possua uma relevância essencial neste ''Cure'', conhecido por ser o trabalho que lançou o diretor aos olhos do mundo. E não é para menos, pois em um suposto thriller policial reside um profundo e assustador estudo acerca de um dos mais primitivos princípios humanos. E é de perceptível assimilação ao espectador de que todo este embasamento psicológico encontra-se implícito e acobertado por diversas camadas de um hermético enigma que o diretor atribuiu à essência de seus personagens; estes, que acabam se tornando a grande peça chave do filme, que constrói seus conceitos aos poucos, e revela-se à cada minuto ainda mais aterrador.
Em uma interpretação notável, Kôji Yakusho encarna o policial Takabe; um ser humano que, como qualquer outro, convive com uma leva de problemas; tanto as obrigações de ser um curioso investigador dos casos mais hediondos da polícia, quanto ter que tomar conta de sua mulher depressiva e que sofre de amnésia. Os limites da sanidade de Takabe encontra-se em cheque quando uma série de assassinatos começam à ocorrer em Tóquio; todos eles interligados por um ponto em comum: o assassino sempre deixa uma marca em forma de ''X'' em suas vítimas, na região do pescoço. O mais intrigante, é que todas as fatalidades são causadas por cidadãos comuns, sem antecedentes criminais ou um motivo aparente para realizarem tais atrocidades. E é por esse motivo que Takabe passa à acreditar que esses crimes estão sendo induzidos por uma terceira pessoa; como se fossem uma sugestão hipnótica.
Quando as investigações começam à cavar mais fundo, descobre-se que realmente existe este terceiro reator, um jovem chamado Mamiya. As perguntas agora, passam à ser feitas diretamente à esse ser de natureza extremamente complexa. E questioná-lo acaba por ser um exercício inútil, já que o mesmo além de não dar uma única resposta acerca de si, rebate com perguntas à primeira vista simplistas, mas que na verdade possuem uma enorme carga filosófica. São questionamentos tão banais que nos levam à acreditar que Mamiya sofre de um grave estágio de amnésia, mas é capaz de deixar os outros ainda mais perdidos mentalmente do que ele próprio. A personificação de uma pessoa com características tão singulares necessita de uma atuação próxima da perfeição, para que todas as nuances de Mamiya consigam ser refletidas e passadas pelo ator encarregado que, no caso, é Masato Hagiwara. Ressalto com louvor o trabalho dele, que realiza uma das mais difíceis performances exigidas que já vi com uma serenidade exemplar.
A tal ''cura'' proposta por Kurosawa seria, na verdade, uma libertação dos mais sombrios sentimentos que o nosso inconsciente insiste em negar. Mamiya poderia ser uma espécie de guia rumo à esse estado mental; o que é deveras curioso, levando em consideração que trata-se de um personagem que não dá respostas e faz exatamente o inverso. É como se o caminho à este tipo de impulsos já estivesse previamente trilhado por nosso cérebro, faltando apenas um estímulo para seguirmos. E mesmo o misterioso Mamiya não seria o verdadeiro responsável por passar adiante essas técnicas de alteração mental; o jovem teria encontrado no ''mesmerismo'' a fonte de inspiração para praticar essa espécie de sugestão hipnótica. Uma poderosa ferramenta que parece ter afetado o próprio Mamiya, e este passa à instaura-la ao resto da sociedade como se fosse um vírus.
Como de costume em sua filmografia, Kurosawa dedica grande parte de seu trabalho ao campo dos sons e imagens. A quase ausência de trilha sonora nos causa uma perceptividade maior aos pequenos ruídos naturais do ambiente em execução; um fato que contribui muito com o teor dramático que cada plano se dispõe à exercer como, por exemplo, aumenta a sensação sufocante das cenas mais tensas. Assim como a prudente escolha das locações das filmagens. O diretor opta por takes externos de pouca claridade; nebulosos ou à noite. E mesmo a iluminação interna é modificada em certos momentos. Mas em qualquer que seja a alternativa de captação de imagem, Kurosawa sempre filma planos longos e amplos; dificilmente se limita à mostrar expressões de um personagem exclusivo. Anexa todos os envolvidos ao cenário e se utiliza de um realismo impressionante; fazendo tudo parecer cru e, muitas vezes, soar com uma naturalidade fantástica.
É deixado bem claro que o que realmente importa não é a perseguição de policial atrás do criminoso, e sim deixar ao espectador para que este se encante por si próprio com o psicológico de personagens tão intrigantes quanto estes aqui. Kurosawa faz uma verdadeira invasão à sua própria mente e tira de lá um estudo que remete à sanidade de qualquer ser humano. E, para nossa grande felicidade, o diretor optou por transpor essas ideias em forma áudio-visual; captando essa trama que nos envolve maravilhosamente com argumentos que ficam latejando na cabeça por muito tempo. E é de obrigatória menção, que trata-se de um filme rodeado por toques de surrealismo e um clima propício à auto interpretações, como a maioria dos longas do Kurosawa. Não se abstendo de suas famosas alegorias e metáforas; na maioria das vezes utilizando objetos e animais como forma de expressão. No final das contas, ''Cure'' é muito mais do que uma obrigação à qualquer cinéfilo; e sim, uma obra necessária para o cinema.
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