É preciso compreender, em um primeiro momento, que a figura mitológica de Ian Fleming em seu James Bond é uma personagem que mais do que se transforma, se adapta a diferentes períodos da história e que o tempo, durante os seus mais de 50 anos na tela, exige reformas estéticas e até mesmo criativas. E são muitas as adaptações, que variam de acordo com diferentes estilos narrativos que moldam desde sua montagem até a criação dos comportamentos de Bond e sua relação com o país e o serviço de inteligência. Por isso que, apesar de tão vetusto como qualquer herói, o mito de James Bond só existe no momento em que é contado.
Em seus mais de 22 filmes, 007 criou diversas caricaturas específicas que, entretanto, se interligavam entre gerações. A irregularidade do espião é até justificada em partes, pela saturação criativa, para o bem da própria personagem: Seja em 60 ou 90, certos elementos permaneceram, pois já fazem parte da própria identidade da figura, desde sua elegância que não lhe permite andar sem seu cabelo penteado até o seu faro para mulheres. Não demorou muito e 007 já não era mais aquela novidade, mas alguns elementos importantes foram adicionados, até por necessidade histórica e narrativa, ao novo mundo da saga, como as diferentes e quase “exclusivas” Bond Girls de cada filme (que teoricamente são essenciais ao protagonista). Porém a questão chave vem com M, papel desempenhado há muito tempo por Judi Dench e que explica de forma um pouco mais resumida, porque Skyfall não é só um marco na chamada “Era Craig”, mas em toda a história do agente secreto.
Desse modo, há uma linha que apesar de ter significativas mudanças conforme o tempo, estava sendo incorporada integralmente nas histórias de Bond desde GoldenEye, e que afirma essa alteração quase permanentemente em Cassino Royale: por isso Skyfall com todas as suas qualidades (e talvez com o oba-oba dos 50 anos da série) botou muito em risco a continuidade das aventuras de 007. É claro que isso não diminui a obra de Sam Mendes, mas talvez seja a principal responsável – direta ou indiretamente - por tudo que acontece em Spectre, até “ironicamente” também de Mendes.
Com tanto tempo de cinema, 007 já dividiu admiradores e fãs, até por uma questão bem simples de estilo. O grande risco desse novo 007 contra Spectre já está no próprio título brasileiro, com a volta do “contra”, que tanto remete aquele espião da década de 60 e 70. Ao mudar completamente o rumo que vinha sendo seguido até então Mendes põe em risco toda a audiência de Bond, até por parte dos fãs mais old school que tentavam acompanhar esse 007 mais “humanizado”. Contudo o risco pode ter dois resultados: a criação de um espião totalmente “novo” e mais flexível em termos de longevidade (com um mocinho e um vilão mais padronizados) e/ou um retrocesso narrativo e histórico, preso nos anos 60 e na eterna auto-homenagem.
Com o crescimento no cinema de heróis, principalmente daqueles que sentem a ameaça de seus antagonistas, Spectre é corajoso ao reunir toda a vilania dos últimos 007s de Daniel Craig, mas ingênuo justamente por desconsiderar que estes não façam parte dessa nova temática apresentada: Oberhauser nada tem haver com Silva, Le Chiffre ou Dominic. Aliás, se há algo que não mudou em todas essas décadas é que Bond sempre foi carente de um grande antagonista, por mais caricato que fosse e isso não muda aqui, mas se confunde ao padrão de Cassino, Quantum e Skyfall. Podemos concluir a partir da forma como Oberhauser é desenvolvido em Spectre, que houve uma certa covardia por parte de Mendes em não ousar de um vilão que necessita de holofotes e todas as atenções, um antagonista quase tão exigente quanto o próprio espião.
Se por um lado há dignidade em ter de voltar às formas clássicas de 007, há também medo de seu próprio diretor em apresentar (ou reapresentar, se achar melhor) essa estrutura que o público desacostumou. Spectre parece querer a aceitação do público em todo instante e para isso foge para os recursos dos 007 anteriores, em busca de afirmar seu cenário e admiti-lo como novo. Mendes parece indeciso entre seguir na ação mais tradicional ou apelar para o sentimentalismo: dai o motivo pelo qual um vilão tão carismático como deveria ser Oberhauser se torna tão sério e amargurado. Essa indecisão, embora respeitosa e compreensível, acaba por ficar cada vez mais explícita, não sabendo se M deve ter o mesmo papel superativo que teve nos filmes anteriores, se James choraminga ou não pelas mortes das mulheres de sua vida ou se apenas luta contra um brutamonte invencível, corre por Roma todinha e ainda de lembrança fica uma noite com Monica Bellucci.
Mendes disse certa vez que o Batman criado por Christopher Nolan o influenciara: aqui nitidamente, é impossível não pensar no morcego quando se fala dos pais e da família de Bond, por mais curtas que sejam essas passagens. Mas longe de TDK, a proposta de Mendes é corajosa e arriscada, mas gravemente afetada pelo estilo de herói exigido pelo grande público hoje em dia. Daí a dificuldade em analisar Spectre que funciona muito mais como um caminho estreito e talvez seguro para a sobrevivência das futuras aventuras. As saídas que 007 pode tomar são grandes daqui pra frente, mas algo é certo, se Skyfall finalizou um ciclo, Spectre recomeça outro.
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