O grande campeão.
Peter O’Toole (1932-2013) ficou conhecido por dois fatores que repercutem até hoje no meio cinéfilo: foi o intérprete do personagem-título do famoso épico de David Lean, Lawrence da Arábia, do qual acabou virando quase um sinônimo, e foi indicado ao Oscar oito vezes sem jamais ter sido premiado (um recorde), tendo que se contentar (a muito contragosto) com uma estatueta honorária pelo conjunto da carreira em 2003, entregue por uma emocionadíssima Meryl Streep. Parece bobo resumir uma personalidade de tamanha importância a um parâmetro tão pequeno quanto o Oscar, mas é fato que, assim como Alfred Hitchcock, o ator foi um dos maiores inconformados de Hollywood por nunca ter levado o prêmio para casa. Muito além disso, foi um dos maiores intérpretes de sua geração, permanecendo como uma lenda viva através das muitas mudanças sofridas pelo cinema desde a Era de Ouro, até nos deixar recentemente, aos 81 anos.
Peter Seamus O’Toole nasceu na Irlanda, em agosto de 1932. Filho de uma enfermeira e de um bookmaker, foi criado na Inglaterra e desde cedo apresentava grande interesse pelas artes dramáticas. Na adolescência, abandonou a escola para tentar a vaga de mensageiro em um jornal de pouca circulação, com a ambição de futuramente poder atuar como jornalista. Antes dos 18 anos já escrevia, mas teve de interromper seu sonho para se alistar na Marinha como operador de rádio, na qual permaneceu apenas o período necessário. Assim que deixou o serviço militar, foi aprovado na Academia Real de Arte Dramática, onde conheceu colegas que futuramente também fariam sucesso, como Richard Harris, Alan Bates e Albert Finney.
Seus primeiros passos foram no teatro e na TV, onde adquiriu uma boa experiência ao lado de célebres diretores e dramaturgos. Embora pertença a uma geração de atores consagrados da Era de Ouro de Hollywood, O’Toole entrou relativamente tarde no cinema em comparação a seus contemporâneos, somente no começo da década de 1960, tendo a seu favor alguma experiência de pontas em filmes para a televisão. Seu início com o cinema foi um tanto tímido, mas lhe rendeu a oportunidade de trabalhar com o grande Nicholas Ray, em Sangue Sobre a Neve, e com Robert Stevenson, em A Espada de um Bravo.
Sua grande chance foi com Lawrence da Arábia, embora só tenha conseguido o papel por conta da recusa de Marlon Brando e, posteriormente, de Albert Finney, que na época estavam com a agenda cheia. Foi um papel complexo, e não seria exagero colocar a composição de O’Toole como uma das mais poderosas e memoráveis de toda a história do cinema. O sucesso do épico de David Lean catapultou o ator ao estrelato, recebendo sua primeira indicação ao Oscar (perdendo para Gregory Peck), e fez dele uma celebridade rentável, em especial por sua pinta de “galã sensível”. Não demorou muito tempo para que ganhasse outro papel de destaque e fosse novamente indicado ao Oscar, desta vez por Becket, o Favorito do Rei, no qual interpreta o Rei Henrique II (perdendo agora para Rex Harrison). Logo em seguida voltou a protagonizar um filme importante, Lord Jim, de Richard Brooks, que o consagra de vez em Hollywood.
Durante os próximos anos, até o fim da década de 1960, Peter participou de projetos importantes, como O Que é Que Há, Gatinha?, roteirizado por Woody Allen, ao lado do grande Peter Sellers; Como Roubar Um Milhão de Dólares, de William Wyler, no qual forma um dos pares mais charmosos do cinema com Audrey Hepburn, e interpreta um elegante e carismático ladrão de obras de arte; A Noite dos Generais, com Omar Sharif; Cassino Royale, um filme de porte pequeno que não comporta o peso de astros como John Huston, Orson Welles, Deborah Kerr, William Holden, Jacqueline Bisset e Ursula Andress; e finalmente mais dois projetos que lhe renderiam duas novas indicações ao Oscar: O Leão no Inverno, com Katharine Hepburn, e Adeus, Mr. Chips, com Michael Redgrave.
O início dos anos 1970 parecia promissor e O’Toole colecionou sua quinta indicação ao Oscar, por A Classe Dominante, depois de ter participado de um filme de Peter Yates, O Último Combate. Mas tudo começou a desandar em sua vida pessoal, quando se descobriu com câncer de estômago, agravado por seu alcoolismo. Em 1976 o ator precisou fazer uma cirurgia em que acabou perdendo o pâncreas e parte do estômago. Seu recesso não foi completo, pois ainda teve aparições no teatro e na TV. Finalmente, em 1979, após um doloroso divórcio, deu a volta por cima e surpreendeu a todos com sua atuação em O Substituto, no qual interpreta um diretor hiperativo e inescrupuloso (inspirado em sua convivência com David Lean, dizem os boatos), e assim recebeu mais uma indicação ao Oscar, seguida por outra nomeação, desta vez por Um Cara Muito Baratinado, uma espécie de auto-sátira metalingüística sobre sua situação como astro decadente afundado na vida boêmia. Nesse meio tempo, atuou em outro papel épico, como o Tiberius do polêmico filme de Tinto Brass, Calígula.
Com a idade chegando e os bons papeis rareando, como sempre acontece em Hollywood, O’Toole foi aos poucos direcionando sua carreira de volta para o teatro e para a televisão, embora não tenha abandonado o cinema por completo, trabalhando com diretores importantes, como Bernardo Bertolucci em O Último Imperador, e Alejandro Jodorowsky em O Ladrão do Arco-Íris (passando por bombas como Malucos e Libertinos, de Neil Jordan, e Supergirl, ao lado de Faye Dunaway Mia Farrow). Inegavelmente, nos anos 1990, seu prestígio maior se deu na TV, quando recebeu o Emmy por sua participação na minissérie Joan of Arc (1999).
Já nos anos 2000, sendo considerado lenda viva do cinema, Peter foi convidado a receber o Oscar honorário e, a princípio, se negou a receber, pois acreditava que tinha muito o que oferecer e que ainda venceria seu almejado Oscar de Melhor Ator. Por fim foi convencido, quando ficou claro que o prêmio seria entregue com ou sem ele presente na noite da cerimônia, e provou futuramente que estava certo ao afirmar que a Academia estava sendo precipitada. Em 2006, depois de papéis insignificantes em filmes como Tróia, o ator surpreendeu a todos com sua sensível composição no drama Vênus, no qual interpreta um velho obcecado em seduzir uma ninfeta que tem idade para ser sua neta, lhe rendendo sua oitava e derradeira indicação, e desta vez perdendo a estatueta para Forest Whitaker.
Deu a voz ao personagem antológico da animação da Pixar, Ratatouille, em 2007, e atuou ao lado de Michelle Pfeiffer e Robert De Niro em Stardust - O Mistério da Estrela. Finalmente, em 2012, anunciou sua aposentadoria, embora esteja creditado no drama Katherine of Alexandria, com estreia prometida para 2014. Peter O’Toole faleceu no dia 14 de dezembro de 2013, de causas não reveladas, e deixou três filhos. Duas delas são fruto de seu casamento com a atriz Siân Phillips – com quem foi casado de 1959 a 1979 –, e mais um rapaz, de um relacionamento rápido com a modelo Karen Brown.
Um dos grandes astros de Hollywood e dos maiores atores de todos os tempos, Peter O’Toole também usou sua imagem para ora apoiar, ora protestar, contra ou a favor de eventos importantes, como as guerras do Vietnã e Coreia. Sua vida pessoal, cheia de tumulto e escândalos, nunca foi capaz de arranhar seu verniz intocável de ídolo absoluto do cinema, além de membro do seleto clube dos injustiçados pela Academia. Mas por mais que para ele tenha sido tão doloroso não ter vencido em nenhuma das oito vezes em que disputou pelo homenzinho dourado, para os que ficam é claro que ele sempre foi e sempre será um grande campeão, que nunca precisou de estátua nenhuma enfeitando a estante para tatuar permanentemente seu nome na história do cinema.