Semana passada, em meio à comoção nacional, veio à tona uma informação sobre Paulo Gustavo de mais de 20 anos atrás. O produtor Rogério Espírito Santo contou que, em 1999, tinha dificuldade de conseguir uma dupla de modelos para produzir uma capa de um beijo gay explícito para a revista 'Sui Generis', que seria revolucionária. Ao encontrar um jovem Paulo e conseguir com que ele e seu namorado à época posassem para a posteridade, Rogério colocou um marco zero à história desse ator que partiu cedo demais, no último dia 4 de maio, vítima de complicações decorrentes da COVID-19, cinco meses depois da primeira vacina ter sido aplicada em alguém, ou seja, sob todos os pontos de vista, uma das pelo menos 200 mil mortes no Brasil que poderiam ter sido evitadas.
Cinco anos após essa foto, Paulo Gustavo seria notado no elenco de Surto, uma peça coletiva onde pela primeira vez D. Hermínia é apresentada ao público; dois anos depois, a mãe mais amada do Brasil ganhou seu espetáculo-solo, Minha Mãe é uma Peça, com a qual foi indicado ao Prêmio Shell de melhor ator. A personagem nasceu junto com a certeza de Paulo em ser artista, através da observação de sua própria mãe, das mulheres de sua família e do dado que faria dele um profissional tão competente em seu ofício: o ato de observar, da própria mãe D. Déa Lúcia, para alcançar todo seu entorno.
Paulo Gustavo, aos 15 anos, em foto postada em suas redes sociais.
Infelizmente, nunca assisti Paulo no teatro, mas em 2009 o conheci em Divã e logo ali senti que estava vendo alguém definitivamente talentoso. Em 2011, Paulo esreia no Multishow 220 Volts e a partir do surgimento da Senhora dos Absurdos, criação sua que teve um impacto muito imediato na internet e chegou até mim imediatamente, eu não veria mais Paulo de outra forma que não como A Voz de uma Geração - ele não apenas falava por mim, mas como eu, e ouvi-lo era como ouvir um diálogo interno. Me sentia compreendido e representado por Paulo.
Durante 15 anos, Paulo Gustavo se tornou um midas - tudo que tocou foi não apenas sucesso, mas um fenômeno. A adaptação para o cinema de Minha Mãe é uma Peça e suas continuações levaram aos cinemas 25 milhões de espectadores; unindo as outras produções que contou com sua participação, foram mais de 40 milhões de ingressos vendidos, um recorde em tão pouco tempo. Através de seus personagens, Paulo não precisou empunhar bandeira alguma sobre qualquer ideologia, pois sua imagem era a própria imagem da vitória sobre o preconceito, a homofobia, a diversidade e a empatia.
Paulo Gustavo como Dona Hermínia, sua personagem mais famosa
Aos 42 anos, Paulo Gustavo vivia um auge contínuo, emendando acertos em profusão, que não tinha qualquer pretensão de coibir e que já tinha pretensões internacionais. Sua imagem bem sucedida no âmbito pessoal, um casamento feliz com o médico Thales Bretas, o nascimento de seus dois filhos há dois anos, representava para mim e para toda a classe LGBTQI+ uma conquista emocionante; por tudo que viveu, realizar-se como ator, como homem gay, ser premiado e aplaudido, traduzir o significado de 'sucesso' em tantas versões, era a prova inconteste de que não apenas podíamos sonhar, como estávamos aptos a realizar, contra as adversidades que a sociedade parecem diariamente impor aos homossexuais de qualquer escala.
Alvo também de muita desconfiança por realizar cinema de matriz popular, com uma figura tão politicamente incorreta quanto é hoje se travestir, além de desfilar sem medo por uma afetação histérica muito incômoda aos padrões, Paulo foi desacreditado como ator, mais especificamente por quem sempre o olhou com desdém. Por trás da caracterização de D. Hermínia, residia um entendimento muito aprofundado de uma persona que ia até a sua gênese - a através de micro gestos, de uma interiorização muito inteligente, de uma abordagem que vai do histrionismo à introspecção, Paulo provou seus recursos vastos ao ir além de dar vida a uma mãe, mas compreender a coluna vertebral de sua personagem e transformá-la em um ser único, dotada de humanidade transcendente capaz de ser identificada por multidões.
A perda de Paulo Gustavo é uma lacuna muito rara de ser preenchida, não apenas porque seus recursos, ideias e motivações eram múltiplos, mas essencialmente porque sua juventude o colocava capaz de dobrar suas possibilidades futuras, como também de ampliar uma profundidade que já era percebida e de promover ainda mais entendimento e reflexão através de suas criações e sua vida, sendo muito sucinto e discreto politicamente. Nem era necessário ir muito além; quem poderia fazer tanto mais pelo casamento gay, pelo fim da homofobia e pelo diálogo a respeito de orientação sexual entre pais e filhos do que o artista assumidamente homossexual mais bem sucedido do país? Com seu exemplo de felicidade familiar inabalável, com a exposição exemplar de sua vida afetiva e particular, Paulo era a própria bandeira.
Thales Bretas, seu marido, e Paulo Gustavo
Em um momento onde o cinema brasileiro é alvo de perseguições e diminuição de suas políticas públicas, a saída de cena do maior recordista da História da nossa cinematografia é acordar para um futuro incerto, onde sua figura guardaria um resquício de segurança. Com projetos assegurados para os próximos anos, a ausência de Paulo é como um retrocesso também conseguido pelo negacionismo das autoridades, que diminuem a cultura e a ciência; saber que o ator, além de tudo, também era filantropo e doador anônimo de causas sociais só deixa ainda mais desoladora sua partida.
A ausência de Paulo Gustavo, como podemos ver, é tão ampla e irrestrita que não podemos observar o atual momento de outra forma que não na forma de legado. De construção de identidade social à realização de qualidade e amplitude crescente, Paulo se provou a tudo e a todos, desde a luta para conseguir espaço para alguém sem oportunidades até a aceitação de sua orientação tão evidente, se vai um amigo que nem todos nós tivemos a oportunidade de conhecer; particularmente, perco uma referência, em todos os sentidos. Saber que realizou tanto em tão pouco tempo e que seu toque estará em permanente contato comigo e com quem o consumiu é a certeza de que seu legado, profissional e pessoal, é eterno... e que as gargalhadas que proporcionou, com lascas de reflexão no recheio, em algum momento voltarão a ocupar o lugar que hoje é do vazio.