Embrutecido por uma carapaça resistente, o faz-tudo Lee Chandler (Casey Affleck) esboça sorrisos com extrema raridade. Dos longos silêncios aos rompantes violentos, o protagonista de Manchester à beira-mar (Manchester by the sea, 2016) está longe de um perfil que sirva de modelo. Mas é justamente sua porção de defeitos que o humaniza tanto e faz querer entender que situações da vida o transformaram naquele sujeito de agora. Kenneth Lonergan, realizador e roteirista do longa-metragem, compartilha o passado de Lee em pequenas doses, revelando um episódio altamente traumático depois do qual seu arranjo emocional nunca mais foi o mesmo. E o presente acena com uma notícia nada agradável: o falecimento do irmão mais velho, que o leva de volta à cidade-título, da qual se mudou há anos.
Cada pessoa é uma soma de acontecimentos, e a narrativa de Manchester à beira-mar reafirma essa concepção com sensibilidade, evitando incorrer no dramalhão pesado. Lonergan exercita seu lado cineasta apenas pela terceira vez, com planos encantadores que mostram Lee como um cara que já teve motivos para sorrir e navegava frequentemente com Joe (Kyle Chandler), o irmão, e Patrick (Lucas Hedges), o sobrinho. Eram momentos ternos e divertidos e Joe adorava contar piadas de tubarão, lembranças que vão e vêm da mente de Lee após seu retorno a Manchester. Essas memórias, a propósito, são distribuídas na trama sem demarcação temporal, num exercício de montagem idêntico ao usado por Woody Allen em Blue Jasmine (idem, 2013), e ajudam a elucidar passagens marcantes que Lee não é mais capaz de verbalizar.
Trata-se de um filme sobre o não-dito e sobre o que foi dito e não pode mais ser recolhido; esse segundo aspecto é a grande tristeza de Randi (Michelle Williams), outra figura importante do passado de Lee que ressurge durante essa visita mais longa dele. Com apenas quatro curtas aparições, a personagem é outra que carrega um coração esfacelado e de maneira irreversível estará conectada a ele - eles têm basicamente as mesmas razões para se sentirem tão doloridos agora. Com sua babagem de dramaturgo, Lonergan valoriza os atores e coloca em seus lábios diálogos cheios de verdade, muito mais nos que cercam Lee, de quem arrancar palavras é uma tarefa árdua desde o trauma, e agora ele é um sujeito que, nos seus próprios termos, está "cagando" para muitas coisas. Não estamos diante da história de um herói em reconstrução, mas de um homem e sua incapacidade declarada de superação.
Na contramão de muitos dramas hollywoodianos, Manchester à beira-mar praticamente abdica de uma trilha sonora. Quando esta surge, é quase sempre incidental: uma única canção com voz aparece em toda a narrativa lá pelas tantas, quando percebemos Lee no que parece um caminho sem volta. E a trilha de acordes é acionada em dois momentos cruciais da trama, um deles o reencontro de Lee e Randi no funeral de Joe, quando Lonergan se vale da linguagem cinematográfica, deixando a imagem suplantar a palavra e a emoção fluir de forma genuína e natural, um exemplo a ser seguido por seus compatriotas e colegas de arte. E que bons atores ele escalou para ser Lee, Randi e Patrick... Cheios de desenvoltura nos seus respectivos papéis, demonstram compreender que menos é mais: aquelas cenas típicas de catarse verbal (existem várias boas, vale ressaltar) que pontuam outros títulos do gênero estão ausentes aqui. O que temos são pessoas que não sabem o que dizer e como dizer.
Essa dificuldade do quê e do como perpassa a relação de Lee e Patrick no presente da história. Existe amor e carinho entre eles, mas as expressões desses sentimentos se dão de forma velada a maior parte do tempo. Como espectadores, ficamos à espera de um abraço e um beijo, e Patrick é o que tenta romper a cerca invisível de arame farpado que Lee erigiu ao seu redor para, ao menos, um rápido contato corpóreo junto com um "boa noite". Seu intérprete não é novato, mas pode causar essa impressão porque mudou um bocado desde Moonrise kingdom (idem, 2012), um de seus primeiros trabalhos na telona. De qualquer modo, é aqui sua primeira grande atuação, e fica o desejo para que ele continue crescendo em atividade diante das câmeras. A simbiose dramática com Affleck chega a fazer pensar que são mesmo tio e sobrinho.
Chamado pelas línguas maledicentes de "o irmão talentoso de Ben" e por um certo Rubens Ewald Filho de "canastrão", Casey está em um de seus melhores momentos junto com O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford (The assassination of Jesse James by the coward Robert Ford, 2007) e O assassino em mim (The killer inside me, 2010), neste segundo também interpretando um personagem de sobrenome Ford. Existe um elo importante entre esses três papéis, uma associação que fica nítida para o espectador durante o após a sessão do filme de Lonergan. Em proporções e circunstâncias distintas, é verdade, mas o ponto de intersecção está lá. No lugar de páginas e páginas de roteiro para memorizar, ele teve que recorrer muito mais aos olhos e aos movimentos do corpo para dizer, e foi muito bem-sucedido nesse caminho. Williams é outra que já vem de desempenhos fantásticos, e destrói em poucos minutos de cinema, à semelhança de Hal Holbrook em Na natureza selvagem (Into the wild, 2007) e Viola Davis em Dúvida (Doubt, 2008). Se a Academia ainda não lhe fez justiça, é torcer para que tal fato seja só uma questão de tempo.
Nas entrelinhas, Manchester à beira-mar salienta que o passado tem peso, e Lee "opta" (até que ponto é uma escolha e não uma total inabilidade de ser de outro jeito?) por carregá-lo em silêncio. A vida em Boston era uma forma de escape, já que encarar as figuras com que convivia à época da tragédia aviva de mais a dor, e o perdão dos outros soa irrelevante diante da impossibilidade de perdoar a si mesmo. Eis um homem que não conhece as respostas certas (sim, elas existem), à deriva em seus próprios sentimentos e fechado para novos encontros. Julgar e condenar alguém assim é ato irresponsável, e não há espaço para tal conduta no texto de Lonergan, que assumiu a direção do projeto quando Matt Damon (!) desistiu do posto para ser "somente" produtor. Existem pessoas que fazem jus ao nosso acolhimento; outras simplesmente precisam dele.
Fantástica análise!
Muito obrigado!