Existe uma máxima que diz que, de certa forma, todo diretor faz sempre o mesmo filme. Não deixa de ser uma verdade, mas com um lado positivo e negativo. Em se tratando dos irmãos Ethan e Joel Coen, ela se revela deliciosa, e tem no musical dramático Inside Llewyn Davis: balada de um homem comum (Inside Llewyn Davis, 2013) mais uma tradução perfeita. Boa parte dos elementos que os entusiastas dos diretores aprenderam a amar, bem como seus detratores jogam no ventilador a cada novo trabalho da dupla estão reunidos aqui, mesmo que em doses homeopáticas quando se compara com os longas anteriores. De certa forma, os Coen revisitam boa parte de sua filmografia, reciclando temas e conduções em que já mostraram domínio. Porém, o maior de todos esses temas, sem dúvida, é o fracasso, que ronda o cotidiano do pacato personagem-título, cujo nome, considerado idiota por um dos sujeitos excêntricos que surgem na narrativa, provém do galês.
Músico introvertido e colecionador de falhas, ele começa a história tentando se colocar no mercado em uma carreira solo depois do suicídio do parceiro, episódio revelado ao espectador somente a certa altura da narrativa. Seu estilo é o folk, termo empregado para designar manifestações musicais que compreendem canções de apelo popular surgidas nos Estados Unidos e no Reino Unido, que tem entre os seus representantes ninguém menos que Bob Dylan. E que canções ele sabe tocar e cantar... Mas não é nada fácil fazer parte do circuito hermético dos artistas, e ele passa boa parte do tempo em tentativas de mostrar a que veio - talento não lhe falta, é muito mais uma questão de sorte e do velho "quem indica", mecanismo terrivelmente suplantador de méritos. Consciente da posição e do espaço reduzido que alcançou, Llewyn ironiza o próprio métier, dizendo que, se a música parece velha ou nunca sai de moda, pode ser considerada folk.
Entre uma canção e outra, o personagem dialoga com gente capaz de despertar o afeto ou a irritação, e que explicam um pouco do seu passado recente. Então, conhecemos a ex-namorada Jean (Carey Mulligan), que já partiu para outra, descobriu-se grávida, mas não tem certeza de quem é o pai, só deseja que não seja Llewyn. O relacionamento terminou de forma tempestuosa, e ela enfatiza o tempo inteiro o quanto quer distância dele. Cantora de voz aveludada - caracterísitica que a atriz já havia apresentado na pele da Sissy de Shame (idem, 2011) -, ela forma dupla com Jim (Justin Timberlake) e tacha o ex-namorado de perdedor, uma das ofensas preferidas dos estadunidenses. Ele rebate acusando-a de carreirista, alguém que coloca o dinheiro e a fama acima do coração, discurso que abre margem para um curioso paralelo com o cinema dos próprios Coen, devotados às suas recorrências e sem a menor preocupação em se adequar às exigências do grande público. É nessa e em outras sutilezas que reside parte do charme e da alma gentil do filme.
Desprovido até mesmo de um teto sob o qual se abrigar, Llewyn pula de sofá em sofá, contando com a solidariedade de amigos tão dóceis quanto estranhos. Em uma dessas noites passadas em casas alheias, perde o gato de estimação de um casal de amigos, e sua busca desajeitada pelo felino só contribui para torná-lo ainda mais humano e acessível. A bem da verdade, ele consegue cuidar melhor do animal que de si mesmo, e lidar com as pessoas lhe parece bem mais complicado, afinal, não basta servir um pires de leite a alguém para acalmá-lo e as portas se abrirem. É assim, devotado demais à sua arte para abrir mão do seu jeito de fazê-la, que Llewyn faz por merecer integrar a extensa galeria de tipos quixotescos dos Coen, inaugurada pelo Ray (John Getz) de Gosto de sangue (Blood simple, 1984) e engrossada pelos personagens-título de Barton Fink - Delírios de Hollywood (Barton Fink, 1991) e O grande Lebowski (The big Lebowski, 1998), respectivamente, John Turturro e Jeff Bridges, só para ficar em alguns exemplos. São todos deslocados e testemunhas dos absurdos da vida, sempre cheia de incógnitas e surpresas.
Isaac detém boa parte do mérito de Llewyn. Sua composição algo minimalista e seu olhar paradoxalmente distante e profundo resumem um sujeito ordinário, como o excessivo subtítulo nacional indica, e demonstra uma compreensão do que os irmãos cineastas gostam de fazer em um filme. E ele conseguiu isso de primeira, já é que novato no universo dos dois que, aliás, escolheram trabalhar com um elenco inédito em suas carreiras, à exceção de John Goodman, ator-assinatura da dupla que faz uma participação como um gorducho que se divide entre a aplicação de drogas, longos cochilos e uma série de impropérios. É um coadjuvante de luxo, assim como F. Murray Abraham, impagável na pele de Bud Grossman, empresário intransigente que sintetiza o interesse dos grandes estúdios nos lucros. Voltando a Isaac, é o seu primeiro grande papel em anos de carreira e o seu reencontro com Mulligan, com quem já havia contracenado em Drive (idem, 2011) encarnando um homem perigoso. Llewyn prova a sua versatilidade, mostrando-o com uma aparência irreconhecível, que em nada lembra aquele personagem.
A inspiração para a escrita do músico vem da própria realidade. Ele tem traços de Dave Van Ronk, que já foi apontado por Bob Dylan (aquele da música folk ) como um dos seus ídolos e fez show ao lado de grandes astros, mas nunca alcançou de fato o reconhecimento. Sua procura por um espaço que pudesse considerar seu teve auge na Nova York sessentista, quando ele enfretou barreiras que, em um primeiro momento, revelavam-se intransponíveis, e muitas delas eram criadas por ele mesmo. O filme dos Coen vem a calhar para reduzir essa lacuna, e o artista também ganhou uma retrospectiva da carreira através de um álbum que reúne várias de suas canções, dando a oportunidade à maioria de descobri-lo e, a julgar pelo longa, constatar um talento enterrado pela indústria. Inside Llewyn Davis é, acima de tudo, a manifestação da simpatia dos irmãos pelo lado mais fraco da corda, que sempre arrebenta, segundo a sabedoria popular, ainda que tenha o seu valor.
Que belo texto. Me fez ver o filme por outro lado. Expandiu meu entendimento. Parabéns!
Que ótimo, Jairo!
Fico feliz que meu texto tenha ajudado você a olhar mais do filme.
Obrigado. 😁
Uma das melhores resenhas que já li!
Belo texto! 😁