"Alain é um bom companheiro
Alain é um bom companheiro
Alain é um bom companheiro
Ninguém pode negar!"
A julgar somente pelo que está posto em seus filmes, Alain Resnais parecia bastante digno dos versos da canção popular entoada por ocasião de aniversários. À semelhança de um garoto travesso, ele sabia imprimir vitalidade às histórias que narrava, e não é diferente com Amar, beber e cantar (Aimer, boire et chanter, 2014), sua última contribuição para o Cinema. Falecido em março de 2014, o realizador que se notabilizou pela perseguição ao tempo e à memória, com toda a capacidade ilusória desta última, vinha mantendo um estilo de direção um tanto falseado. Explica-se. Desde Medos privados em lugares públicos (Coeurs, 2006), suas lentes miravam o forte componente de artificialidade das relações humanas, traduzido majoritariamente em uma paleta de cores berrantes. À essa investigação, por assim dizer, somou-se um apego à palavra, possivelmente o veículo mais imediato para a transmissão de sentimentos.
Seu filme derradeiro se mostra como o ápice dessa busca, já que até mesmo os cenários são descaradamente artificiais, aproximando Cinema - arte da imagem - e teatro - arte da palavra - de maneira incrivelmente orgânica. Esse caminho tinha começado a ser traçado em Vocês ainda não viram nada! (Vous n'avez encore rien vu, 2012), cujos personagens se deixavam seduzir pela força do texto do espetáculo que haviam encenado em diferentes épocas passadas. No caso de Amar, beber e cantar, os ecos teatrais se mostram desde a primeira cena, um longo e divertido diálogo entre Kathryn (Sabine Azéma) e Colin (Hippolyte Girardot), um dos três casais que movimentam a trama. Fica estabelecido naquela conversa aparentemente banal a fluidez dos limites entre realidade e encenação, ao mesmo tempo em que a composição do ambiente denuncia o tempo todo que tudo não passa de um filme. São integrantes de uma companhia de teatro amador ensaiando para uma nova peça, mas também um casal e suas pequenas rusgas.
Os outros dois casais são Tamara (Caroline Silhol) e Jack (Michel Vuillermoz) e Monica (Sandrine Kiberlain) e Simeon (André Dussollier), e todos ficam consternados ao saber que um amigo em comum, Georges Riley, tem poucos meses de vida em razão de um câncer em estágio avançado. Deveria ser um segredo entre o médico Colin e seu paciente, mas Kathryn consegue arrancar a confissão do marido e espalha rapidamente a notícia aos amigos, e cada qual demonstra sua tristeza com o fato à sua maneira. Daí para frente, a câmera se alterna entre as conversas dos casais, que fazem emergir a finíssima ironia e o sarcasmo do roteiro, que Resnais adaptou da peça de Alan Ayckbourn com o pseudônimo de Alex Reval, enquanto os diálogos ficaram a cargo de Jean-Marie Besset. É um dos raríssimos casos em que o cineasta não filmou roteiro alheio, tendo participação efetiva na transposição da premissa contida na peça para a linguagem fílmica.
O resultado dessa participação efetiva na elaboração do texto são atores perfeitamente encaixados em seus papéis, e três deles são velhos parceiros do realizador. Azéma, sua atriz-assinatura, encarna com marcante desenvoltura a esposa de língua solta que tira o marido do sério com sua curiosidade, e exibe um carisma desastrado mesmo quando mete os pés pelas mãos. Os outros amigos são Giradot e Dussolier, este último com tempo em cena consideravelmente menor que os demais, consequência de seu status de coadjuvante, o que não significa menos importância e/ou talento (parece evidente, mas ainda existe quem acredite na equivalência indiscutível entre esses aspectos). O entrosamento de todos é perceptível, e deixam a clara sensação de que se divertiram bastante nas filmagens. Dá até para arriscar que Resnais era um brincalhão nos bastidores, e deixava o clima bem descontraído entre todos os membros da produção.
A maior ironia de Amar, beber e cantar, porém, está no fato de o diretor ter falecido pouco depois da realização do filme. Desse modo, fica praticamente impossível não associar Georges, sempre mencionado no filme e jamais visto em cena, com sua figura levada. Com sua presença na ausência, ele movimenta as ações dos personagens, sendo mote dos ciúmes dos maridos, que "perdem" suas esposas temporariamente quando elas decidem superar uma à outra nos cuidados com ele. Até mesmo um dos cartazes do filme mostra o que seria o corpo de Georges "sobrevoando" o sexteto, numa espécie de pictografia premonitória da partida de Resnais. O que não parece coincidência nessa história é a forte similaridade entre a representação de Georges e o próprio cineasta, de porte esguio e fios brancos, sinal de seus 91 anos de existência. A despeito da idade avançada, era um realizador de muito fôlego, e o júri do Festival de Berlim reconheceu o fato, concedendo a ele o prêmio de Inovação Artística. E, assim, um grande mestre assinou sua bela despedida.
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