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Espelho de Carne

(Espelho de Carne, 1985)
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Críticas

Cineplayers

Os desejos (inconfessos) da burguesia

8,0

Espelho de Carne (Antônio Carlos Fontoura, 1985) é baseado em um texto teatral do dramaturgo Vicente Pereira que ainda não havia sido transposto para os palcos à época do lançamento do filme. Por conta do texto, produzido originalmente para o espaço disponível no palco, a ação transcorre basicamente em um apartamento. A única exceção concreta é a introdução. Nesta, revelam-se dois amigos em um leilão: Álvaro (Denis Carvalho) e Jairo (Daniel Filho). Os dois acompanham a venda de móveis do palácio dos prazeres. Eles se divertem com a situação, embora não pareçam dispostos a dar lances nos objetos oferecidos. Entretanto, um espelho chama a atenção de Álvaro, que vê no objeto uma possibilidade de presentear Helena (Hileana Menezes), com quem é casado há pouco tempo.

Álvaro leva o espelho para a esposa. A partir daí, o apartamento dos dois se torna o espaço cênico do filme - com exceção de poucas sequências que se desenrolam ao redor da residência do casal. Helena não encontra o melhor lugar para acomodar o presente e recebe a sugestão de Ana (Joana Fomm) — esposa de Jairo — de que o espelho ficaria melhor no quarto. Logo, o ambiente em que o presente de Álvaro se instala torna-se um lugar de desejo e luxúria. Bem diferente do que parecia ser até então. Álvaro e Helena não tinham uma vida sexual intensa. Da mesma forma, Jairo e Ana. Os casais se reuniam, basicamente, para jogar cartas no apartamento e tomar um drinque, sempre de forma comportada. A vizinha Leila (Maria Zilda Bethlem), inclusive, é vista como um ser estranho por ser divorciada e trabalhar, ao invés de cuidar da casa como Helena e Ana. Ou seja, o desquite é uma mácula que faz com que ela não siga uma cartilha pré-determinada de como se portar em sua vida de mulher de classe média alta.

No entanto, assim que o espelho aparece, o verdadeiro apetite dos burgueses de um condomínio da Zona Sul do Rio de Janeiro finalmente se revela. Dotado de um magnetismo incompreensível, pois quem o vê não se dá conta, o espelho reflete, despido de qualquer pudor moralista, quem nele se olha. Nesse sentido, para além do texto primeiramente teatral, a fixidez no apartamento de Helena e Álvaro é significativa que haja convergência entre o que realmente importa: seja entre os personagens, seja no filme como um todo. Faz sentido, então, Álvaro, Jairo e Leila não aparecerem em seus ambientes de trabalho ou mesmo falarem a fundo sobre em que área atuam ou qual cargo ocupam. Afinal, apenas o quarto — o lugar dos prazeres lascivos — importa. Por vários momentos, os personagens se lamentam do trabalho como uma obrigação quase insuportável. Contudo, o encanto do espelho oferece a oportunidade de ficar em casa, beber, apostar e transar.

O universo de aparências da burguesia se revela artificial a cada minuto. Todos vão ficando mais seduzidos pelo poder que o objeto exerce. Entretanto, não são apenas os valores burgueses que Fontoura coloca em xeque. Quando Helena contrata uma diarista (Ivy Fernandes) para limpar a bagunça que ela não dá conta de arrumar, vai beber e dançar com Ana na sala enquanto a mulher trabalha. No quarto, porém, a moça é seduzida por uma vontade incontrolável de se masturbar. Quando Helena e Ana se dão conta do que a moça está fazendo, as duas vão repreendê-la. Ela, contudo, diz que nunca tinha feito isso antes, que é adventista e vai embora assustada. Tanto os valores burgueses, quanto os valores religiosos, são percebidos como amarras sociais, que existem para reprimir o prazer corporal e transformar o sexo em algo sujo - uma devassidão moral que não deve ser exercida.

Os conflitos de classe, contudo, existem mesmo nas relações que se formam entre os personagens. Afinal, as pessoas da mesma classe social podem ir para a cama juntos, mas o mesmo não ocorre com a empregada doméstica, que é escorraçada quando se permite desfrutar do prazer. As relações de classe delimitam os verdadeiros interesses da burguesia, em qualquer momento que seja - inclusive na hora do sexo.

A intensidade das sequências sexuais se acentua conforme os dias em frente ao espelho vão passando e os personagens vão ficando mais confortáveis com a situação. O apartamento deixa de ser iluminado por um branco asséptico e uniforme, ganhando, aos poucos, uma vermelhidão sombria que deixa o ambiente mais soturno e parecido com os típicos “inferninhos” que recheavam a Zona Sul do Rio de Janeiro na época.

Inclusive, quando Helena e Ana viajam, Álvaro e Jairo ficam com o apartamento apenas para eles. Os dois - típicos machistas - apostam uma noite de sexo. Analisando a obra com o devido tempo histórico, é curioso ver dois dos principais diretores da Rede Globo em uma sequência encharcada de tesão. A emissora, que só foi ter uma cena de beijo entre dois homens quase trinta anos depois, representa o moralismo burguês que Antônio Carlos da Fontoura já implodia na década de 1980.

Fontoura já tinha filmado os tipos sociais da Zona Sul do Rio de Janeiro em Copacabana Me Engana (1968). Ali, nada parece agradar realmente as pessoas, que parecem acreditar que tudo está cada vez mais enfadonho conforme o tempo passa. Mesmo a sequência de ménage à trois ao som de Baby, da banda paulista Mutantes, tem um tom letárgico, de aparente insatisfação. Ao contrário dos cinco protagonistas em Espelho da Carne que, cada vez mais, se excitam com experiências sexuais incomuns em suas vidas até aquele momento.

Por fim, resta ao grupo entregar-se aos prazeres ou concordar em estilhaçar o objeto que lhes converteu a vida em atividades luxuriosas desenfreadas. Mesmo que tenham de lidar com seres ocultos de outros planos, a resposta não é tão difícil, pois como Fontoura manifestava desde seu primeiro longa-metragem: não há nada mais melancólico do que a vida burguesa da Zona Sul do Rio de Janeiro.

 Crítica integrante do especial Abrasileiramento apropriador do Halloween

Comentários (1)

Ted Rafael Araujo Nogueira | sábado, 19 de Dezembro de 2020 - 09:05

Por isso que no meu especial só tem animal monstro. É um texto foda por cima do outro.

Lucas Reis | segunda-feira, 21 de Dezembro de 2020 - 13:27

Especial fantástico! Super importante repensar o cinema brasileiro dessa forma!

Ted Rafael Araujo Nogueira | quarta-feira, 23 de Dezembro de 2020 - 13:23

Com toda certeza mestre. O cinema nacional tem de ser mostrado e debatido. Especialmente o brutal, frontal, de horror. Que respira sangue e vomita hipocrisia. Vamos pra cima.

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