Uma das carreiras mais ricas do cinema americano.
Blake Edwards será sempre lembrado como um cineasta que muito provocou gargalhadas no público, imagem essa perpetuada pelas constantes reprises de suas comédias mais clássicas nos canais de televisão ou pelo lançamento delas em dvd. Essa condição não deixa de ser verdadeira (Edwards foi o principal renovador da comédia norte-americana na década de sessenta, junto com Jerry Lewis), mas enxergar o cineasta apenas dessa maneira é ignorar uma filmografia inteira das mais produtivas e criativas que surgiu no cinema americano no pós-guerra e que ainda teria muito a oferecer na sua fase final nos anos oitenta. O que acompanha a sua obra é um olhar terno presente mesmo na comédia mais burlesca (as trapalhadas com o Inspetor Closeau, por exemplo) e o registro cruel por trás da superfície mais leve e sensível (o exemplo máximo sendo Bonequinha de Luxo [Breakfast at Tiffany’s, 1961]), geralmente com uma sofisticada elegância na condução e na maneira com que articulava os seus planos e com que mantinha um fluxo de imagens em movimento, seja na comédia visual (o pastelão) ou ao se aventurar em outros gêneros (o drama, romance, musical, etc.).
Nascido em 26 de julho de 1922, com o nome de William Blake McEdwards, em Tulsa, Oklahoma, pertencia a uma família de artistas (o pai era diretor teatral e o avô dirigiu na época do cinema mudo), e ele próprio começou como a atuar em Hollywood aos vinte anos, trabalhando nessa função até 1948, quando escreveu seu primeiro roteiro para cinema (Panhandle [idem, 1948], de Lesley Selander), deixando de lado a carreira de ator. Escreveu para o rádio, especializando-se em histórias policiais recheadas de humor, e depois no cinema formou uma parceira com o diretor Richard Quine, escrevendo seis dos seus filmes (quatro como veículos para o astro Mickey Rooney). Nos anos 50 roteirizou muito para a televisão (incluindo uma série para Rooney) e dirigiu algumas séries que se tornariam clássicas, especialmente Peter Gunn (1958), sobre um detetive particular que gostava de jazz e se vestia com esmero, e onde aproveitou muito de suas experiências com comédias policiais que escrevera para o rádio. Em paralelo às suas atividades na TV, estreou como diretor em Hollywood com Sorria Para a Vida (Bring Your Smile Along, 1955), ao qual se seguiu Ele Riu Por Último (He Laughted Last, 1956), ambos veículos para o ator-cantor Frankie Lane. No ano seguinte, Edwards iniciaria com o drama romântico Hienas do Pano Verde (Mister Cory, 1957) uma parceria com o produtor Robert Arthur e o ator Tony Curtis, que seguiria com De Folga Para Amar (The Perfect Furlough, 1958) e Anáguas a Bordo (Operation Petticoat, 1959), esse último o mais conhecido desses seus primeiros trabalhos, e que juntamente com a série Peter Gunn o tornou um talento a ser observado.
Foi com Peter Gunn que Edwards iniciou a sua parceria com Henry Mancini, que viria a ser um dos seus colaboradores mais inestimáveis. Como esquecer as trilhas de Bonequinha de Luxo, de Vício Maldito (Days of Wine and Rose, 1963), um dos melhores dramas existentes sobre alcoolismo, e da série iniciada com A Pantera Cor-de-Rosa (The Pink Panter, 1963)? Cabe destacar ainda na carreira de Edwards nessa época o thriller noir Escravas do Medo (Experiment In Terror, 1962), ainda que nem de longe este tenha alcançado a popularidade de Bonequinha de Luxo, talvez o filme mais delicado já feito com a prostituição como tema, mas onde o espectador se quiser pode realmente optar apenas por se perder na construção de clima e atmosfera trabalhados por Edwards. O reino da imagem em que Bonequinha de Luxo se instala é puro deleite e prazer estético. O encontro com Peter Sellers em A Pantera Cor-de-Rosa e sua continuação Um Tiro no Escuro (A Shot in the Dark, 1964) consolidou as experiências de Edwards nas misturas brilhantes de humor e narrativa policial, em torno de uma das figuras mais engraçadas do cinema, o inspetor Jacques Clouseau, com seu sotaque francês exagerado e incrivelmente desajeitado. Foi o auge da comédia pastelão na obra de Edwards, ao lado de duas outras realizações foras-de-série que expressam uma notável liberdade de criação: A Corrida do Século (The Great Race, 1965) e Um Convidado Bem Trapalhão (The Party, 1968). Também transpôs para o cinema a sua primeira grande criação, Peter Gunn (Gunn, 1967), cuja versão para o cinema ficou eclipsada pelos sucessos da sua parceria com Sellers (o cineasta faria ainda um telefilme com o personagem em 1989).
O casamento com Julie Andrews em 1969 mudaria os rumos de sua carreira, realizando como presente para sua esposa uma superprodução musical, o belíssimo Lili, Minha Adorável Espiã (Darling Lili, 1970). Julie Andrews era até então uma estrela padronizada para um público-família como intérprete de tipos femininos politicamente corretos, matriarcais e assexuados (conseqüência dos sucessos de Mary Poppins [idem, 1964] e A Noviça Rebelde [The Sounds of Music, 1965]), algo que Edwards decidiu romper ao destruir essa imagem e criar essa sátira de espionagem que mesclava comédia, policial e musical, com um personagem para Andrews que em matéria de charme e delicadeza só perde para o de Audrey Hepbun em Bonequinha de Luxo, mas com uma moral sexual ainda mais dúbia. Algo parecido com que Orson Welles tentou fazer com Rita Hayworth em A Dama de Shanguai (The Lady in the Shanguai, 1948) ao tingir os seus cabelos de louro e lhe acrescentar uma perversidade inédita aos olhos do grande público, que na época também rejeitara essa transformação. Lili foi a produção mais cara de Edwards até então, mas cuja arrecadação mal chegou a vinte por cento dos custos, quase levando o estúdio a bancarrota, e o cineasta nunca deixou de responsabilizar os produtores pela inserção de alguns números musicais e cenas românticas desnecessárias. O fracasso comercial abalou o prestígio de Edwards e sua mulher jamais se reergueu como grande estrela. O diretor passou os anos seguintes tentando reconstruir em vão a sua carreira e a dela, dirigindo pequenos filmes que passaram despercebidos, obrigando-se a reatar a parceria com Peter Sellers (com quem não se dava muito bem, em parte devido ao gênio difícil do ator) e prosseguir com a série A Pantera Cor-de-Rosa, em filmes não tão coesos quanto os dois primeiros do Inspetor Closeau, mas que colecionam uma infinidade de gags das mais inventivas.
O sucesso estrondoso desses filmes permitiu que Edwards desenvolvesse o que seria a fase final de sua filmografia a partir de Mulher Nota 10 (Ten, 1979), vendido ao público como uma comédia erótica (muito por conta da presença da modelo Bo Derek, que antecipa o tipo de estrelinha passageira que viraria padrão nas décadas posteriores), mas que por baixo dessa superfície traz o desconforto de personagens quarentões diante dos conflitos com a passagem do tempo, as expectativas com a velhice e com relações e vidas sexuais em declínio, a busca de novas emoções e as inúteis discussões entre casais. Maior êxito de bilheteria do cineasta, o filme fez do baixinho Dudley Moore um astro, marcando o retorno de Julie Andrews às telas após anos de ostracismo e redirecionando Edwards para a sua prolífica carreira na década seguinte.
Blake Edwards decidiu seguir esse sucesso com S.O.B. (idem, 1981), uma sátira pessoal ao universo de Hollywood, com humor amargo e cáustico, espécie de vingança do diretor e de Julie Andrews ao desprezo de Hollywood após o fracasso de Lili, Minha Adorável Espiã. No filme, para garantir o sucesso comercial do seu filme, o produtor o transforma em uma fita erótica, incluindo uma cena em que a estrela se despe. Edwards não disfarça referências nem intenções, realizando com Andrews (que estrela a produção) o que seria a sua obra-prima dessa fase final, junto com o filme seguinte, Vitor ou Vitória? (Victor/Victoria, 1982), esse o único a receber o amplo reconhecimento que Edwards e Andrews há muito mereciam (é o melhor trabalho de toda a carreira da atriz). Tendo completado sessenta anos de idade, Edwards não pára de filmar, prosseguindo com as vezes um ou dois filmes por ano, incluindo a tentativa de ressuscitar a série A Pantera Cor-de-Rosa após a morte de Sellers, usando cenas com o ator não aproveitadas nos exemplares anteriores em A Trilha da Pantera Cor-de-Rosa (Trail of the Pink Panther, 1982), o que custou um processo ao diretor, o que não o impediu de continuar a série sem Sellers, com A Maldição da Pantera Cor-de-Rosa (Curse of the Pink Panther, 1983) e com o que seria o seu último trabalho para o cinema, o fraco O Filho da Pantera Cor-de-Rosa (Son of the Pink Panther, 1993), estrelado por Roberto Benigni (na época em alta por suas aparições em filmes de Jarmusch e Fellini). Edwards ainda dirigiria alguns outros trabalhos bem interessantes seguindo os temas explorados em Mulher Nota 10, como Meus Problemas com as Mulheres (The Man Who Loved Women, 1983) ─ remake de O Homem que Amava as Mulheres, de François Truffaut ─, o divertido Minhas Duas Mulheres (Micki + Maude,1984), o autobiográfico Assim é a Vida (That's Life!, 1986) ─ co-escrito pelo seu psiquiatra e rodado em sua casa ─ e o delicioso Assassinato em Hollywood (Sunset, 1988), uma brincadeira com a imagem que possuímos de mitos históricos e da própria fábrica hollywoodiana na época dos pioneiros. A última imagem que guardamos do diretor foi de quando lhe foi entregue um Oscar especial pelo conjunto da obra, em 2004, chegando ao palco numa cadeira de rodas e levantando-se efusivo para receber a estatueta das mãos de Jim Carrey. Foi o último acerto de contas e a paz definitiva com a indústria hollywoodiana.