Quando José Luiz Villamarim procurou o escritor Luiz Ruffato pedindo para adaptar um de seus livros, não se podia imaginar que desse processo que durou tantos anos sairia uma obra tão sincera e verdadeira a respeito de pessoas não frequentemente retratadas no cinema brasileiro. Apresentando uma atmosfera muito fácil de se relacionar, o município de Cataguases, Minas Gerais é palco para um festival de angustias e medos constantes que acompanham seus personagens durante todo o tempo de projeção.
Luzimar (Irandhir Santos) é o gerente de setor de uma barulhenta fábrica de tecelagem, seu dia muda na véspera de natal, quando descobre que o velho amigo de infância, Gildo (Julio Andrade) voltou a cidade para visitar sua mãe, Dona Marta (Cássia Kiss) e com ele traz lembranças que remete o protagonista a um acontecimento traumático no passado de ambos. É interessante que ao construir toda essa intensidade crescente, Villamarim opta por posicionamentos de câmeras não convencionais, como faria se estivesse dirigindo algo para a TV, ainda que as produções de sua autoria vem mudando o modo de fazer séries na televisão aberta, algo que foi iniciado em algumas cenas de Avenida Brasil, e agora é mais recorrente nos mais recentes O Rebu e Justiça, mas é só nessa sua estreia no cinema que ele tem maior liberdade para realizar um trabalho mais primoroso, então quando a câmera é colocada em um travelling que anda desfocado até enquadrar o rosto de Luzimar observando o trem de sua cidade passar, ele capta um desejo oculto do personagem de quem quer partir, desejo esse que é a chave principal da narrativa, com isso Villamarim da a primeira deixa de que a partir daquele momento, o que vamos assistir é um filme cheio de silêncios que tem muito a dizer, e exatamente por isso, quando há presença de som, é algo muito forte e usado como recurso para contar o que aqueles personagens calados sentem, com olhares e gestos cuidadosamente construídos pelo elenco que são sempre ressaltados pelos enquadramentos escolhidos pelo diretor.
E se o desejo de Luzimar de partir daquela cidade era algo enrustido, com a chegada do amigo esse anseio se desencadeia cada vez mais junto a intensidade do contato entre eles, que no começo são homens sem jeito ao lidar com saudade e depois são consumidos não só pelo medo, mas também pela inevitável necessidade de falar sobre o incidente que marcou o passado dos dois. Assim Gildo acaba por, mesmo que involuntariamente, se gabando de como sua vida melhorou depois que partiu da cidade para São Paulo e como as coisas ali, naquele lugar estão sempre estagnadas, o que só faz deixar Luzimar mais pensativo. É interessante, pois conforme as lembranças da infância deles vão se tornando claras ao público, eles se afastam afetivamente, mas o contato físico passa a ganhar uma intensidade inesperada e agressiva, representando a dor de guardar em si uma culpa que vai manter-se para sempre. Nisso o mérito é todo de Irandhir e Julio que são dois atores excepcionais, com uma química natural e claro, tendo o apoio um do outro em cena. Deve ser por isso que é tão intrigante quanto acompanhar as personagens mulheres da narrativa que estão sempre nos cantos e sozinhas, outro tipo de ciclo que perdura os habitantes, em especial mulheres, dessa cidade.
Toninha a personagem de Dira Paes é uma ex-prostituta da cidade que se apaixona e se casa com Luzimar com a intenção de formar uma família, sem o roteiro precisar jogar as aspirações de seus personagens de forma óbvia na tela, roteiro esse adaptado e organizado de maneira mais que eficiente por George Moura, é gradual e sútil o descobrimento do desejo por trás dessa mulher forte que largou seu emprego para ficar com quem ama, sem deixar o lugar pequeno em que mora onde a falácia chega rápido a todos. Ao coloca-la sozinha em planos abertos por sua casa vazia, onde Toninha entra e sai de quadro algumas vezes e quando enquadrada em primeiro plano com expressão de ansiedade no fundo há o som de vozes de crianças brincando na rua, Villamarim consegue imprimir esse medo do abandono e a vontade dela de constituir vínculos afetivos reais, dos quais ela nunca pode desfrutar durante os anos que ainda era prostituta.
E então por último temos a mãe de Gildo, interpretada com a veracidade necessária para que possamos crer que Cássia Kiss é uma mulher pobre que o tempo tornou triste e desconfiada, sem o marido e deixada pelos filhos que foram ganhar a vida em São Paulo, a personagem aprendeu a estar a margem de todas as situações, sempre em cantos observando e ouvindo as conversas, como se não pertencesse a tudo aquilo. Inclusive as personagens mulheres desse filme passam todas pelo mesmo conflito, o do abandono, tanto Toninha quando liga trémula para Hélia, irmã do marido, pedindo para que a moça passe o natal na casa dela, com medo de passar a data sozinha, assim como Hélia é lembrada algumas vezes que não tem ninguém (se referindo a um par amoroso) ouve que é “sozinha” ou quando a mãe de Luzimar e Hélia que doente no hospital, nem mesmo recebe a visita do filho.
Fica claro o medo desse destino já prescrito das pessoas que moram ali, desses personagens sempre tão apáticos, o medo de Toninha é que o ciclo continue e ela se encontre abandonada em um hospital na noite de natal, ou abandonada pelos filhos durante o ano todo como Dona Marta, um medo que casa perfeitamente com o de Luzimar que além de atormentado por erros passados, vê na volta do amigo como poderia ser diferente se tivesse seguido outros caminhos, algo que não adiantaria pois o destino a essas pessoas vem em forma de condição. Então se um tem medo de ficar e a outra medo de ser deixada essa triste história passa a se encaixar, história essa já anunciada em uma cena das cenas mais delicadas do filme, onde ao tentar ligar diversas vezes pro marido, Toninha se aproxima de sua janela, mostrada num primeirissimo plano que foca cada fio da tecelagem de uma cortina vermelha, com a personagem encostando a cabeça sobre ela e fazendo essa referência do tecido ao marido que trabalha na fábrica e enfatizando essa necessidade de aproximação da parte dela, em contraponto Luzimar atende o celular do outro lado, também num primeirissimo plano, mas escondido atrás do portão de madeira da casa de Gilmar, dando ideia dessa autodefesa em não querer permanecer na vida que leva.
No fim das contas é impressionante a atmosfera criada por Villamarim com a ajuda do grande diretor de fotografia Walter Caravalho, ao não focar a ponte onde as crianças jogavam bola nas lembranças de Luzimar e Gildo, deixando qualquer ação ali apenas como um blur que reflete exatamente o que ambos sentem, a vontade de não enxergar que aquele incidente realmente aconteceu. É de um visual muito belo e simplório como tem de ser, que casa com a personalidade da cidade e seus personagens, casa com figurino cuidadosamente escolhido e até com os objetos de cena tão característicos de uma classe social de baixa renda.
A cena final pode parecer subjetiva, mas não é, ao entregar aquela carta, Toninha dá a Luzimar a certeza do inicio de um ciclo iminente, desse destino prescrito que todos ali tem tanto medo, de ficar preso nessa cidade onde ambos são assombrados por seus passados. Redemoinho é a dor desse passado e o medo desse ciclo, do mundo que dá voltas não saindo do lugar.
Cara, fico curioso como vc criou esse filme na sua cabeça pois não é o filme que assisti rs.