Uma hora ou outra tudo tem que mudar. Está certo que a tentativa de mudança pode levar a dois caminhos: o céu ou o inferno. Algumas mudanças exigem audácia, como tirar um doce da boca de uma criança.
Durante mais de quatro décadas, James Bond cativou milhões de fãs pelo mundo afora. Foram vinte filmes que deslocaram multidões aos cinemas. A cada película o espectador fazia as mesmas perguntas: quantas vezes Bond vai pedir a famosa vodka-martini (batido, não mexido)? Quantas mulheres o charmoso agente consiguirá levar para cama? Quais as cenas de ação exímias e escapistas farão parte do filme? Quais engenhocas criadas por Q salvarão 007 do pior?
Mesmo que o prólogo “Quem viu um James Bond, viu todos” talvez esteja certo, o personagem criado por Ian Fleming conquistou um carisma jamais visto antes na história do cinema e isso não pode ser negado por ninguém, pois se isso não fosse verdade, o espião não sobreviveria da década de 1960 até os dias atuais. Até então interpretado por 5 autores diferentes, o espião viveu seus momentos de instabilidade.
Quando estreou em 1962 no ótimo “Dr. No”, na pele de Sean Connery, foi o seu ponto áureo. Bond fora interpretado por Connery mais 4 vezes, antes de se recusar a viver o agente pela sexta vez seguida. E todos os filmes foram ótimos. A recusa de Connery foi a primeira grande barreira para a franquia. Na procura de um novo ator, os produtores tiveram a audácia de mudar um pouco do esteóritipo do personagem. Assim, trouxeram o inexperiente George Lazenby, até então vendedor de carros e modelo, para encarnar 007. Enquanto a história, teve-se a idéia de colocar um pouco de sentimento no espião, famoso por ser frio e usar mulheres apenas para poucos momentos de prazer ou pequenas ajudas em suas missões. Assim surgiu “A Serviço Secreto de Sua Majestade”, onde se cortaram um pouco as cenas de ação e exploraram o lado mais dramático, com James Bond se apaixonando e, até mesmo, casando com a Bondgirl. Na época, os fãs puristas massacraram tanto o filme quanto o ator. Lazenby se recusou, para alívio de muitos, a encarnar Bond pela segunda vez.
A solução foi trazer Connery novamente, agora com um cachê milionário exigido pelo próprio ator. Assim, em 1971, surgiu “Os Diamantes São Eternos”, um longa marcado por ser a despedida definitiva de Connery da franquia original e por iniciar uma ondas de extrapolações. Ou seja, se esqueceu totalmente do exemplar anterior, retomando o esquema dos primórdios, só que agora, com muitos exageros. Isso, infelizmente marcou a era de Roger Moore como terceiro James Bond. Moore viveu o agente por sete vezes entre os anos de 1973 a 1985, alternando entre episódios divertidos, como é o caso de “O Espião Que Me Amava”, e outros totalmente descartáveis, como “O Homem com a Pistola de Ouro”. Mesmo com o apoio de muitos fãs, a franquia se demonstrava cada vez mais desgastada com uma sequência de clichês impressionante, piadas cada vez mais presentes e roteiros nada originais. Havia ainda o problema de Moore estar com 60 anos, velho demais para o papel, que já havia prejudicado o último filme, “Na Mira dos Assassinos”. Eis que surge a necessidade de procurar um quarto James Bond.
E o aprovado foi Timothy Dalton, que era cotado para ter assumido o personagem em 1973 ao invés de Moore, porém era muito novo na época. E mais uma vez, os produtores aproveitaram a troca de ator para mudar um pouco a receita. Mais uma vez, Bond ganhou sentimentos. Além disso, seu humor ficou mais seco e a ação muito mais séria. Novamente o resultado foi uma onda de críticas negativas ao ator e aos seus dois filmes como 007, “Marcado para a Morte” e “Permissão Para Matar”. E a série, junto com o problema de direitos autorais, o que congelou a franquia por vários anos, se tornou a maior barreira enfrentada pela franquia.
Muitos nem acreditavam mais que haveria mais um filme. Daí, em 1995, surge o ator Pierce Brosnan. Dono de um carisma inigualável, ele assumiu o posto com charme em “GoldenEye”, juntando todas as melhores características dos quatro Bond’s anteriores. A fórmula voltou ao convencional e a série ressurgiu das cinzas, voltando a mobilizar milhões de pessoas para as salas de cinema. E isso funcionou com os dois filmes subseqüentes, porém voltando a barreira do absurdo em “Um Novo Dia Para Morrer”, que arrecadou uma das maiores bilheterias da série, onde havia um Brosnan muito mais a vontade no papel, mas que sofreu com o roteiro esquizofrênico e estapafúrdio, incluindo elementos como carro invisível, efeitos péssimos e vilões patéticos.
Mesmo com o grande sucesso de público, inteligentemente os produtores perceberam que não poderiam sobreviver de filmes puramente comerciais e resolveram fazer a mudança ainda mais drástica que as anteriores. Primeiro que recusaram o cachê que Brosnan havia pedido para voltar a ser Bond e lhe deram um grande ponta-pé, chamando Daniel Craig para o papel. Bastou essa notícia para os fãs puristas começar, novamente, a onda de críticas: esse cara é loiro, feio e não tem porte do 007. O segundo ponto é que abandonaram, definitivamente, o modelo clichê de roteiro, fazendo um script muito melhor acabado, com reviravoltas soberbas, cortando-se as cenas de ação mirabolantes e colocando cenas mais realistas. Novamente, deram um espírito mais humano ao agente que, mais uma vez, se apaixona e paga muito caro por isso.
Isso tudo contado por “Cassino Royale”, primeiro livro de Ian Fleming sobre seu personagem, que mostra como James Bond chegou ao status de um espião com licença para matar.
A grande maioria dos fãs, mesmo assim, continuaram a massacrar o longa. Mas a grande realidade é que foi um novo começo para o agente, dando fôlego para que venha ainda mais títulos para a franquia. A sorte de “Cassino Royale” foi a de ser lançada já num mundo com uma população maior do que a das décadas passadas, onde o número de fãs puristas do velho Bond já é minoria. Sem falar no contexto histórico, que agora no século XXI é totalmente diferente. Para conduzir o filme, o já conhecido diretor Martin Campbell foi chamado. Ele já havia entregado outra aventura divertidíssima de 007 em 1995 com o filme clássico “GoldenEye”.
O longa começa contando exatamente como Bond chegou ao status de 007, com duas mortes profissionais. Após ser promovido, sua primeira missão é ficar de olho em um terrorista na África, o que dá início a uma instigante perseguição. Sem dúvidas, é uma das melhores cenas de ação do cinema. Após isso, é descoberto Le Chiffre, um financiador de terroristas, interpretado magnificamente por Mads Mikkelsen que dá o tom sombrio certo para o personagem. Assim, há uma outra grandiosa cena de ação no aeroporto, um diálogo excelente entre Bond e Vesper Lynd (uma bondgirl interpretada pela belíssima Eva Green), seguido de uma longa partida de pôquer no Cassino Royale contra o vilão. Campbell foi tão eficiente em sua direção que conseguiu evitar que essa parte ficasse chata cansativa, inserindo diálogos competentes além de inserir intervalos entre as partidas, ou com cenas de ação ou com cenas emotivas entre o espião e Lynd, comprovando o tom mais humano que deram ao agente secreto. Acabada a partida, ocorre a grande reviravolta do filme e temos a confirmação da paixão arrebatadora que o espião passou a sentir pela bondgirl.
Sendo extremamente competente como suspense, ação e, até mesmo, drama, “Cassino Royale” marcou um recomeço para a tradicional série. Mais maduro e muito menos fantasioso do que seu antecessor, o filme marcou a história, não só a da série, mas também do cinema. Daniel Craig pode ser feio, mas foi a escolha certa para esse novo ideal de James Bond que os produtores resolveram apresentar ao mundo.
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