No momento em que escrevo essa crítica estou ouvindo a canção O Children, do cantor australiano Nick Cave, canção essa que faz parte da trilha sonora do penúltimo Harry Potter. Ela é tocada numa das cenas mais belas do filme (e de toda a série), quando Harry (Daniel Radcliffe) tira Hermione (Emma Watson) para dançar, numa tentativa de descontração em meio ao caos que estão as suas vidas. A seqüência foi uma liberdade, dentre algumas outras, que o diretor David Yates (dos dois filmes anteriores) sabiamente tomou, fugindo das palavras escritas de J. K. Rowling, mas nunca fugindo do espírito da saga da escritora.
Apenas uma breve recapitulação: No filme anterior, Dumbledore (Michael Gambom) revela a Harry que o único meio de acabar com Voldemort (Ralph Fiennes) é destruindo as partes de sua alma que estão dividas em sete, as chamadas horcruxes. Duas já estão fora da jogada, o diário de Tom Riddle (destruído por Harry na Câmara Secreta) e um anel, esse último pelo próprio Dumbledore. Agora falta quatro, a sétima é o pedaço da alma que ainda está no corpo de Voldemort. Além das horcruxes poderem estar em qualquer lugar do mundo, para piorar Dumbledore morre. O mago deixa para seu pupilo enfrentar sozinho (com a ajuda de Rony e Hermione, é claro) o desafio que será o maior de sua vida.
Sendo assim, o que resta agora para o trio é ir atrás desses artefatos amaldiçoados. As Relíquias da Morte: Parte 1 começa com o tom sombrio e preocupante deixado no término do anterior. Hermione apaga a memória dos pais, para que eles não se lembrem da filha caso ela morra (no livro esse acontecimento é apenas citado pela garota, Yates fez questão de filmá-la). Os Dursley deixam a sua adorada casa e se escondem sob a proteção da Ordem da Fênix, e Rony (Rupert Grint) ouve com tristeza o chamado de sua mãe para o jantar, já sabendo que esse será uma das últimas refeições familiares que ele fará antes da grande jornada.
Entra o logotipo da Warner, agora todo enferrujado. Sai o logotipo da Warner e somos conduzidos por Snape (Alan Rickman) até a mansão dos Malfoy, lugar onde está reunida toda a grande escória do mundo bruxo (os Comensais da Morte) sob a narina ofídia e as mãos cadavéricas de Lord Voldemort. A passagem que se segue é cuidadosamente forjada para que o espectador sinta, aos poucos, que será impossível ver, ao longo da projeção, qualquer vestígio do espírito ingênuo e previsível criado por Chris Columbus nos dois primeiros filmes. Para quem acompanhou a saga ao longo desses quase dez anos, fica quase impossível lembrar-se daqueles filmes que marcaram a infância de tanta gente (a não ser talvez, ironicamente, na cena da dança citada no primeiro parágrafo). Na mansão dos Malfoy, uma professora de Hogwarts é torturada, morta e servida de refeição para a cobra do Lorde das Trevas. A inocência acabou.
Após o casamento do irmão mais velho de Rony, Gui Weasley (já presente nos livros há bastante tempo, mas tendo sua primeira aparição apenas agora) e Fleur Delacour (a competidora do Torneio Tribuxo em O Cálice de Fogo), o trio foge do ataque dos Comensais da Morte e vão parar numa avenida trouxa. A partir daí, Harry, Rony e Hermione procuram esconderijos ao mesmo tempo em que tentam descobrir onde estão as horcruxes. Com um ataque do mal atrás do outro, eles passam da casa de Sirius para várias florestas e penhascos. Esqueça Hogwarts. Agora ela está apenas presente na imaginação dos garotos e na espiada que Harry dá no Mapa do Maroto.
A decisão de dividir o livro em dois filmes não poderia ter sido mais acertada. Com tempo de sobra, Yates desenvolve sem pressa praticamente todo o conteúdo presente na obra de Rowling. Ao contrário de Columbus, que, apesar de ter sido o mais fiel, deixou A Pedra Filosofal e A Câmara Secreta episódicos demais, uma copia e cola que se desvalorizou rapidamente, Yates deixa As Relíquias da Morte com uma fluidez digna das melhores adaptações literárias vistas nos últimos vinte anos, sem cortes absurdos e liberto de diálogos disfuncionais, características que tanto marcaram os filmes anteriores, com exceção ao sexto.
A seqüência no Ministério da Magia, aonde o trio vai à busca de uma horcrux, é extraordinária. Yates tira o máximo de proveito do aspecto político empregado por Rowling, que remete fortemente ao nazismo. No caso do mundo bruxo, os ditos sangue-puros (aqueles que nasceram de pais bruxos) caçam os sangue-ruins (nascido de pais trouxas), esse últimos correm então o risco de perder seu direito a magia. Yates e o designer de produção Stuart Craig dão ao Ministério um assombroso ar germânico dos anos 30, abusando das cores azul escuro, preto e verde amarelado. O figurino é dominado por jaquetas de couro escuras para os homens e terninhos listrados para as mulheres. Uma sangue-ruim em processo de julgamento usa uma vestimenta cinza que remete a uma judia perseguida. Panfletos com tarjas vermelhas produzidos em série por empregados vidrados e uma estátua mostrando trouxas esmagados sob a frase ‘Magia é Poder’ fornecem ainda mais semelhanças com as perseguições reais contra diferentes raças. A semelhança é tão grande que esperamos Joseph Goebbels sair de uma das lareiras do hall a qualquer momento.
As performances de Radcliffe, Watson e Grint, que já vinham melhorando exponencialmente desde A Ordem da Fênix, não poderiam estar melhores. Radcliffe parece ter finalmente entendido o seu papel de herói, e apesar de ainda manter alguns trejeitos duros, o ator consegue encarnar um Harry totalmente perdido, decepcionado, mas ainda com algum resquício de esperança. Grint deixa a caricatura de lado e coloca Rony na difícil posição de melhor amigo do Eleito, através de seu olhar penetrante e questionador. Mas, como sempre, é Watson que rouba cada momento em que está em cena (quase todos). Com seu cenho sempre franzido e uma voz suave, mas pesarosa, ela deixa Hermione na posição de mãe dos amigos, tentando esconder sua insegurança e temores para ter força em continuar junto a Harry.
Rickman, Fienes, Helena Bonham Carter (Bellatrix Lestrange) e Julie Walters (Molly Weasley), apesar de pouco tempo na tela, cumprem seus papéis com uma dedicação admirável. Fiennes desliza na pele do vilão, Rickman, com sua voz grave, mantém o mistério que cerca o personagem, Carter enlouquece de vez e Walters é admirável em passar tristeza a abatimento apenas com um simples olhar. Somos apresentados a dois personagens importantes, o novo Ministro da Magia, Rufus Scrimgeour (Bill Nighy exagerando demais no sotaque) e Rhys Ifans, que interpreta o atormentado Xenófilo Lovegood, pai de Luna. Ambos são bem aproveitados, assim como Jason Isaacs, na pele de Lucius Malfoy, que transmite com proeza o desespero de sua nobreza e respeito falidos.
A maior e mais inspiradora liberdade de Yates foi ter transformado um conto narrado por Hermione em uma animação ao nível dos desenhos de Tim Burton, um dos pontos mais altos do filme. Uma participação maior do elfo Monstro e a volta de Dobby, em grande estilo, que nos conduz ao tristíssimo climax, nos levam a perceber o cuidado do diretor em se manter fiel ao livro, tanto para a felicidade dos fãs quanto para a felicidade de qualquer um que goste de um filme de fantasia grandioso. Relíquias da Morte: Parte 1 ainda não chegou ao tão esperado nível de obra-prima, mas com a segunda parte vindo por aí, as chances de Harry Potter finalmente ganhar esse status são grandes.
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