Temos aqui um exemplo de gambiarra e picaretam para se atingir o resultado do horror que abraça a marmota. Seduzidas pelo Demônio parte do pressuposto do usufruto do flashback para impor sua narrativa tresloucada. Dirigido pelo italiano radicado no Brasil Rafaelle Rossi, que futuramente teria vulto com seu material Coisas Eróticas (dirigido em parceria com Laerte Calicchio, 1981), o primeiro filme brasileiro com sexo explícito. Neste em questão Rossi explora os corpos a jeito de servir ao gênero terror, e claro com uma ruma de cenas de semi-nudez gratuitas para manter o padrão boquista da rua do Triunfo. A Boca do Lixo.
De início a abertura brega. Uma delícia. Com cenas doutro filme, claro. Enganação do mais alto escalão, algo que explicarei melhor à frente. Se o troço filmado é torto, meu texto também o é. A fita desde já, é um apanhando de cenas desconjuntadas. Isto para se obter a metragem necessária. Desde amostragens de seitas escrotas aos materiais de tribunal. São muitas informações em conjuntura. Aqui tem chifre, seitas satânicas, macumba, padre paranormal, tribunal, relação professor/aluna com sexo no meio, possessão demoníaca... A intenção do Rossi era meter esta gama de situações, tanto para o alcance de metragem já afirmado para um longa, quanto para trazer um caráter de terror pelo exagero das coisas. Teria de servir como inclusão no obrigatório tom de erotismo que pairava pela boca do lixo, no qual aqui seria mais uma exploração do corpo das mulheres do que um erotismo propriamente dito. A putaria sexual da boca. Chifre também é uma parada que os cineastas da boca já usavam em seus materiais e o lance da possessão demoníaca ganhara vulto com o sucesso absoluto de O Exorcista (The Exorcist, 1973) do William Friedkin e, como não poderia faltar, o material do José Mojica Marins – o nosso Zé do Caixão – que realizara Exorcismo Negro (1974) exatamente pegando a onda do filme norte-americano e obtendo notável resultado em material de cópia do tema, mas absolutamente original na sua brasilidade. São elementos que fomentaram várias possibilidades e assim era a boca. Aproveitava-se daquilo que estivesse em voga para submeter o seu crivo de putaria e avacalho.
A seita satânica vermelhona (esta filmada pelo Rafaelli Rossi, claro), exagerada. A intenção pelo excesso nas cores absurdamente vivas é convite ao cabaré. Tudo aparente e absurdo. O absurdo como forma de aterrorizar, o Zé começara isso no Brasil, e vários diretores abraçaram esta escolha estética. Onde tudo fosse permitido. Abuso de cores, situações e marmotas. Garoto endemoniado. Os velhos zooms em flashbacks em tom farsesco de auto-importância que acabam por divertir principalmente na cafonice do elenco, que pode pecar por tudo, menos pela falta de esforço das caras e bocas propostas forçosamente na obra. Atuações duras. Joia. Posadas grossamente e apostando em cenas avulsas na narrativa. Como quando Mônica (Shirley Steck) arruma lentamente suas malas após afirmar no julgamento que iria embora, com a câmera alongando o tempo e perambulando no espaço para mostrá-la somente de calcinha enquanto faz isso. Sim, Rossi escolhe manter a mulher arrumando as malas sem roupa para podermos apreciar seu corpo. A criatividade pra inventar motivo pra aparecimento de bunda e peito é sem limites. Avulsamento total. Ritmo lento, este sim, problema da fita. Aleatoriedade narrativa. Reconstrução de acontecimentos em inoperância.
Um preparo terrenoso com enchimento de linguiça (30 minutos) para entrar o tema da possessão. E um preparo esquisito de idas e vindas no tempo para se falar dum assassinato investigado de maneira avulsa que existe como fio condutor até o tal descontrole por possessão. Numa montagem abrupta e sebosa, como quando o professor Fábio (José Mesquita) sai do papo com a ex-esposa e vai para sua namoradinha atual mudando o clima e a trilha drasticamente. Sem disfarces ou subterfúgios. Grosseria que funciona. O sensacionalismo exagerado na boca do lixo. Suporto erotismo brega (vendido como tal, mas, sim uma pornografia não explícita em sua prática) através dos cortes rápidos. Como uma mulher pelada na mente do cidadão Fábio, que a imagina nua em pelo em cortes secos e com cara de tesão que deveria ser emoldurada. Lente grande angular para breguice no soft porn com bundas e peitos aparecendo de graça. Joia. Este desconjuntamento é o Seduzidas Pelo Demônio.
De novo o exagero. E tem muito vermelho? Qual seria a intenção de meter um esticamento de baladeira nas cores, que biçava no carnavalesco, para meter medo? Estamos falando duma coisa produzida a toque de caixa como tantas outras na boca nos anos 70. E existia um público que pedia por este tipo de fita, então cada diretor metia um direcionamento para o seu material, desde ideias recauchutadas com originalidade e seboseira deliciosa (Cláudio Cunha); discussão de temas escrotos com qualidade imagética acima da média do período (Jean Garret); cara de pau dura, lisa e plagiadora na acepção mais escrota (Tony Vieira); terror mais bruto e com genialidade na sua concretude e sempre arriscando algo (José Mojica Marins); entre outros tantos. Era espaço de oportunidades a serem caçadas que, ao contrário do que se vende o senso comum, não era somente uma gama de tarados fazendo filmes injetando quaisquer coisas para se ter a putaria embutida. Tinha isto? Com toda certeza. Tinha demais, mas não vamos cooptar com a narrativa da generalização solta como se a putaria fosse unívoca e total no cinema da boca. Os elementos basilares estão lá. Oportunismo, frases feitas, mulheres nuas, garotões e outras patifarias. Cabia ao realizador impor o que pretendia com a obra. Desde fazer algo copiado que tivesse um tom seu ao aspecto da cara de pau como cópia e crime. E é neste último esquema que entra a pilantragem do Rafaelle Rossi. Usa do exagero e da falta de verossimilhança interna para fazer o seu projeto de qualquer jeito. O negócio era fazer. Por isto temos tantas informações soltas que o diretor tenta justificar somente pelo terror e pelas bundas. É o cara criando e oportunizando cenas desconexas para juntá-las a posteriori e que façam uma coesão mínima. O exagero destas sequências – as atuações canhestras, as cores chapadas e a dinâmica grosseira da decupagem – busca manter o foco nas mesmas e nos corpos nus. Exagero e nudez. A necessidade de coesão não é buscada. Se tem peito, bunda e exagero, já é funcional. Cinema feito para entreter uma massa que ainda clamava por um espaço para que aflorasse seu desejo imoral que internalizado socialmente ficava.
Quer um ponto que corrobore o vale tudo do cinema da boca? Em alguns trechos faltam pedaços na narrativa que mantenham uma fluidez contígua. Para resolver isso o esquema é viciado através dos flashbacks ligados à história pregressa contada no tribunal? Sim, sabemos. É a forma de inventar suas set pieces. Assim mantém seu vai e vem aleatório. O que nos leva a uma marmotosa, criativa, bagaceira, oportunista e picareta volta no tempo para o vale dos mortos. Numa conversa fiada afirmativa de passado – absolutamente estapafúrdia – encaixando o esquema narrativo principal numa viagem interiorana de carruagem totalmente avulsa e desconectada da já baleada verossimilhança interna da fita. Numa temporalidade desconexa para se dizer o mínimo. Com mortos aterrorizantes aparecendo neste vale numa colorização puxada para o azul. Com trilha pungente. Isto ganha contornos mais embusteiramente divertidos quando sabemos que as cenas externas desta sequência são chupinhadas doutro filme. Roubadas mesmo, na cara lisa. Material original da película alemã Die Schlangengrube und das Pendel (The Blood Demon ou The Torture Chamber of Dr. Sadism ou The Snake Pit and the Pendulum, ou Castle of the Walking Dead – 1967). Terror da Alemanha Ocidental dirigido por Harald Reinl. Quem chegou como incauto por aqui, que descubra que esta era uma prática de vários dos filmes bagaceiros das antigas, sejam eles da boca do lixo ou dos Giallo italianos por exemplo. Desenrolavam isto pelos mais variados motivos, que variavam (ou somavam) entre falta de grana ou falta de narrativa, ou ainda falta de vergonha na cara. Tudo encaixado de maneira escrota, o que nos traz a mais uma camada de diversão quando percebemos a diferença abissal entre os planos produzidos pela fita mesmo com os roubados. Não existem escrúpulos. O lance é fazer cinema, independentemente de plágio ou roubo. O fato do encaixe ser totalmente irreal só enriquece a putaria envolvida. O pleno exagero até na pilantragem. Aliás, principalmente nesta.
A completar o sem número de situações pitorescas e avulsas, temos o Padre Quevedo como expert em paranormalidade para desfilar um discurso sobre a suposta possessão. Numa malandragem do diretor buscando meter uma credibilidade temática. Sem falar do parque de diversões aleatório. E o terror acaba chegando no lugar do erotismo? Como não poderia deixar de ser, o terror é bagaceiro e plenamente zuadento. Com gritaria a marmotagem. Gemedeira e possessão. Com utilização de closes com lente grande angular para causar desconforto pela deformação dos objetos, no caso da figura possuída de Roberto (César Roberto), algo já utilizado no filme citado aqui, Exorcismo Negro, quando o artifício maroto é usado em similitude com a figura do Joffre Soares. Nisso, ora funciona bem, ora causa o disparate do estranhamento beirando a piada, principalmente pelo seu desfecho no confronto final na igreja. Terminando com um final feliz anticlimático e altamente risível. Seduzidas é uma obra completamente despirocada e que sua existência mediante todas as suas características é mais importante que o filme em si. Um esquema de pura malandragem, que mesmo com alguns defeitos pesados mantém o interesse pleno. Eu gosto é do estrago.
Crítica integrante do especial Abrasileiramento apropriador do Halloween
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário