Pesquisa divulgada pelo IPEA no último dia 27 de março apontou para um dado alarmante: 65% dos brasileiros concordam que mulheres que usam roupas curtas merecem ser atacadas por estupradores. Com ou sem erratas (aliás, ela foi feita após a conclusão desse texto, veja aqui), a constatação de que grande parte do país pensa assim coloca o nosso povo num estágio de esclarecimento pré-civilizatório, sintetiza bem o machismo enraizado no inconsciente brasileiro e, ainda mais amplamente, aponta para uma tendência quase universal de tolerância e cumplicidade em casos de violência contra a mulher. Diante desse cenário preocupante surgiu o mais recente viral da internet brasileira, a campanha "Eu não mereço ser estuprada" – que, coincidentemente, encontra em exibição nos cinemas brasileiros uma produção francesa em perfeita sincronia ideológica.
É noite, em um subúrbio no norte da França, quando a protagonista (Sophie Marceau) adentra uma delegacia de polícia e anuncia o título do filme: Prenda-me (Arrêtez-moi, 2013). A confissão é de assassinato do marido, morto há 10 anos em um suposto suicídio. A reação da tenente Pontoise (Miou-Miou) ao pedido, insólito, é de estarrecimento. Sobretudo após tomar ciência do histórico de maus tratos do casamento entre Jimmy e a “culpada”. A policial nega o pedido de prisão da própria assassina confessa, e daí nasce o surreal confronto sobre o qual o filme se baseia; e é também esse o gancho para a abordagem inteligentemente descontraída que o diretor Jean-Paul Lilienfeld irá adotar.
A crônica social ganha a tela isenta de moralismos. Mais do que isso: se, por um lado, Sophie Marceau interpreta sua protagonista com o comportamento avoado de uma personagem caracterizada pela passividade e falta de rumo, a excelente Miou-Miou dispensa cinismo como a policial que cumpre seu plantão no escuro, para que todos pensem que a delegacia está fechada, e se droga com uma bebida armazenada dentro de uma garrafinha no formato da Virgem Maria. Demonstrando a habilidade e sutileza de uma verdadeira comediante, a atriz veterana leva ao riso sem esforço, além de ora servir como porta-voz dos sentimentos do público diante daquela situação inesperada, ora a realçar a ideia de uma sociedade virada de cabeça pra baixo (em pleno século XXI, homens agridem e mulheres se submetem), como Lilienfeld pretende transmitir pela transgressão à ética policial e a valores religiosos cometidos pela (aparentemente) tresloucada personagem.
No entanto, a submissão inerente à personagem principal não a coloca como culpada pelos maus tratos aos quais a própria foi imposta em anos de casamento (e como a pesquisa do IPEA sugere que as vítimas sejam). Aí reside a ambiguidade no adjetivo que lhe é imposto: ela é culpada, mas o é apenas pela morte do marido. E porque assim quer! Pois, o que se vê é uma personagem insegura, frágil, ou seja, alguém suscetível à agressividade de um marido machista e descontrolado (aspectos estes acentuados pela caracterização do ator Marc Barbé) – aqui, ela é só vítima. Sua culpa, assumida, segue outro rumo, mais complexo, e um dos motivos é a satisfação em declarar publicamente ter tido um lampejo de "coragem" e posto fim ao seu martírio.
Quanto às cenas de agressão, o filme se apropria de um ótimo recurso: comumentemente utilizada de maneira vulgar, desnecessária, a câmera subjetiva acompanha a protagonista em todas as sequências em que ela é vítima da fúria de Jimmy, cumprindo a função narrativa de colocar o espectador na desconfortável posição da personagem violentada. Desse modo, Lillienfeld também implementa um elemento especificamente cinematográfico a um material original muito calcado em diálogos (o romance “Les Lois de la gravité”, do autor Jean Teulé) e anteriormente adaptado ao teatro. E não é só isso: assim como não tem rosto quando atacada, pois a câmera está posicionada em seu ponto de vista, a protagonista não tem nome. Este efeito, como em diversos outros filmes e no recente Até o Fim (All Is Lost, 2013), sugere a apatia da(s) personagem(ns) e o fato de que qualquer um pode ser vítima de seus infortúnios, seja a depressão (no caso específico do filme estrelado por Robert Redford), seja a violência doméstica.
Assim, dentre as risadas tímidas proporcionadas por situações e personagens que parecem extraídos de folhetins, uma trama de premissa surreal logo cede ao realismo e à relevância do quadro social crítico que se apresenta. Os momentos de catarse se mostram pontuais e à serviço do caráter de denúncia no cerne da obra original, como a ironia, a acentuar a urgência da questão, evidencia. No momento certo, o público ainda é exposto ao desconforto de ver um garfo perfurar a carne de uma mulher indefesa. Ciente da força de tal cena, Lillienfeld a interrompe com um fade out lento e impositivo: “Veja e reflita”. Esse é o modo do diretor e roteirista obrigar o seu espectador a pensar a respeito e impedir a propagação da ideia da violência doméstica como algo normal e aceitável. Tal qual Jean Teulé, ao conceber uma trágica personagem que prefere viver presa numa cela a uma vida de repressão física e emocional.
Gostei da crítica, me fez querer ver o filme!
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