É estranho e até sintomático que uma das críticas de cinema (e dentre todas as outras artes) mais influentes de todos os tempos seja mais lembrada hoje por seus “erros” do que por seus valores. No lançamento de Blade Runner 2049 (idem, 2019) e na chegada do aguardado futuro de Blade Runner - O Caçador de Androides (Blade Runner, 1984), no último mês de novembro, memes invadiram a internet para recordar trechos de Pauline Kael detonando Ridley Scott e seu jovem clássico sci-fi. Esse é apenas um exemplo de muitos da crítica (séria) que fura bolha somente para ser ironizada, diminuída. O que deve, por si só, ligar o sinal de alerta em quem se dedica à profissão.
Para essas pessoas, O Que Ela Disse: As Críticas de Pauline Kael (What She Said: The Art of Pauline Kael, 2018) é um documentário absolutamente fundamental. O filme mostra que todas as dificuldades que enfrentamos hoje (das financeiras à liberdade de expressão, como o próprio Festival do Rio mostrou recentemente ao remover uma crítica de Bruno Galindo de sua página após pressão dos realizadores) estão longe de ser coisa nova, e que o caminho não é ceder, mas o contrário: resistir e radicalizar. Não no sentido da empáfia, de se tornar um crítico mais amargo, mas de ser um crítico de fato. Sempre! Qualquer coisa diferente de uma análise honesta e da própria opinião é um desserviço, quando não mera propaganda. Para isso existem os conteúdos pagos em espaços específicos. E as assessorias de imprensa — que prestam um trabalho essencial, mas um outro trabalho. O que enriquece o cinema é justamente essa separação, e essa pluralidade.
Nesse sentido, é bacana descobrir que Pauline Kael esperava as primeiras críticas de um filme saírem para depois lançar seu texto com um novo olhar. Não que ela mudasse de opinião no intuito de cunhar o “lacre” muito à frente de seu tempo; mas para moldar um formato próprio, singular, assim chamando a atenção para si, sim, e também enriquecendo a discussão sobre a obra analisada. O crítico que não enxerga isso como uma de suas contribuições, diga-se, está perdido na função. No caso, está sem função.
Essa convicção de que o trabalho de Pauline Kael era sério, não meros textos polemistas a parasitar o cinema, reside na solidez de suas críticas, claro, mas principalmente na coerência de seu discurso. Se, por um lado, há quem até hoje defenda que sua avaliação do que é bom ou ruim se contradizia filme a filme, ninguém pode dizer o mesmo sobre sua posição em relação à crítica — que ela defendia com paixão, assim as escrevia, e pela carreira se submeteu a crises na vida pessoal. Mas o importante aqui é destacar que Pauline talvez tenha sido a crítica menos dependente do conteúdo de seus textos, haja vista a forma potente e autoral encontrada por ela para articular esse conteúdo. Assim seus textos se tornariam atrativos independentemente do que ela dizia. Assim, tantas pessoas viriam a considerar sua leitura tão ou mais importante que ver os filmes em que se baseavam suas críticas. Assim, discordar de Pauline Kael não comprometeria o prazer de ler Pauline Kael.
Essa fórmula, que consiste em escrever seus textos como verdadeiras crônicas e torná-los uma arte em si mesmos, foi um meio encontrado por Pauline para valorizar, ao mesmo tempo, o cinema e o seu trabalho. Bem como todo um grupo de jovens críticos reunidos após a sessão, me senti inspirado pelo documentário. E em xeque. O que mais me provocou e fez refletir foi justamente sobre a necessidade do crítico de cobrar mais de si mesmo a cobrança que ele faz dos cineastas e suas obras de pensar formas mais engajantes.
O estilo encontrado por Pauline Kael é cheio de pessoalidade, personalidade, o que viria a gerar toda sorte de reações. Seu atrevimento e frontalidade (muitas vezes encarado como desrespeito, agressividade) para detratar certas produções renderia efeitos colaterais junto aos realizadores e seus fãs ardorosos. Sua marca única a fez influente junto a toda uma geração de críticos e espectadores, a ponto de muitos crerem que ela sozinha era capaz de influenciar o sucesso de um longa-metragem nas bilheterias e impulsionar um novo movimento de vanguarda em Hollywood. Aqui rola um exagero.
Estreante na direção (e na montagem, no roteiro, operando câmera e até dublando Woody Allen!), Rob Garver destaca a crítica positiva de Pauline Kael para Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas (Bonnie and Clyde, 1967), então muito detratado pela imprensa, como decisiva para a ascensão da Nova Hollywood. A afirmação é excessiva e se torna imprecisa, a julgar pelos muitos outros fatores — históricos, culturais, políticos, artísticos e até legais (posso desenvolvê-los em um texto à parte) — mais importantes para essa transformação na indústria cinematográfica estadunidense. Também vale ressaltar que o bom trabalho de pesquisa e a montagem correta do cineasta novato estão a serviço dos procedimentos mais simples do cinema documental, como a convencional alternância de imagens de arquivo com declarações de entrevistados célebres. A elaboração formal é ínfima.
O vasto material em texto e vídeo em que vemos Pauline Kael criticar filmes de forma tão exigente e afetuosa deixa uma pergunta irresistível no final: “Será que ela teria gostado desse documentário sobre a sua vida?” O Que Ela Disse é um longa-metragem que aposta tudo em contar a história de uma mulher baixinha, forte e dedicada que se manteve firme até o fim da vida aos seus princípios — e com um foco total nessa personagem carismática que se revela suficiente para se manter interessante por quase 100 minutos. Assim, Rob Garver realiza uma biografia inspiradora não somente para quem gosta de crítica e de cinema, mas para qualquer pessoa, de qualquer área, que tenha de lutar contra as diferentes pressões do meio para realizar um bom trabalho e ser feliz fazendo o que gosta. Tem como um filme assim ser ruim? Nem Pauline diria que sim.
Crítica da cobertura do 21º Festival do Rio
Sei lá... Não vou muito com a cara dessa moça não. Confesso que não tenho muita vontade de conhecer mais o trabalho dela...