Uma das mais importantes personalidades da história da crítica de cinema.
Considerada como uma das mais influentes críticas de cinema dos EUA, Pauline Kael escreveu artigos e notas para a revista The New Yorker de 1968 a 1991, quando, decepcionada com a baixa qualidade dos filmes, o desinteresse do público em discuti-los e o anti-intelectualismo que começava então a vigorar, resolveu-se aposentar. Antes da The New Yorker, publicou para várias revistas alternativas e tinha um programa de rádio. Inteligente como poucos, reescrevia mesmo as menores notas infinitas vezes procurando a palavra correta. Com seu humor corrosivo, sua extraordinária sensatez, em especial para não cair em modismos, e seu conhecimento sem medidas levou-a a ser uma das mais admiradas intelectuais americanas da década de 60 e 70, até que o reacionarismo dos anos 80 levou-a a ser, também, uma das mais odiadas críticas de cinema de todos os tempos.
Formada em filosofia em Berkeley, era filha de fazendeiros judeus e gramou no início da carreira, trabalhando em empregos ruins (mãe solteira, chegou a trabalhar de cozinheira para sustentar sua única filha, Gina). Dessa época reclamou pelo resto da vida. Boêmia, casou-se e separou-se três vezes, escreveu peças, até que aceitou uma encomenda, em 1953, para criticar Luzes da Cidade, de Charles Chaplin. Detonou o filme (‘luz fraca’) e com isso começou sua carreira de crítica e, com ela, as polêmicas.
De início, era mais ligada às vanguardas e aos filmes europeus, soltando torpedos na grande produção (desprezava David Lean, por exemplo), mas não embarcou em nenhum extremo do cinema-cabeça. Com o tempo, foi abandonando suas convicções e sendo mais permeável às narrativas mais lineares e formas consagradas de cinema. Quando escreveu que O Conformista, de Bernardo Bertollucci, não era um bom filme, ela já havia chamado a atenção dos intelectuais de Nova York. Quando enfim começou a trabalhar na The New Yorker, teve estabilidade financeira, um ambiente artístico cosmopolita, interessado, a seu dispor e, principalmente, nenhum editor a lhe mudar os textos sem permissão (reescreveu a maioria dos textos mutilados e os publicou corretamente em livros depois). Pode assim desenvolver o melhor da sua carreira.
Nunca gostou de Federico Fellini, salvo Oito e Meio. Achava Stanley Kubrick um misantropo que fazia publicidade de suas manias apenas para ocultar o que era: um hollywoodiano recalcado. Ao dizer que o documentário Shoah, de nove horas de duração, era uma tremenda apelação, como a maioria dos filmes sobre o Holocausto, causou furor, sendo chamada de anti-semita, mas nunca mudou de opinião. Detalhe: ela não viu os filmes de Steven Spielberg sobre o tema.
Foi furiosa e duramente atacada em sua carreira, sem tréguas – afinal, quem mais para dizer que o cinema de Vittorio de Sica era ingênuo e um tanto tolo? Além de racista e anti-feminista, foi chamada de homofóbica – o documentário O Celulóide Secreto traz uma referência a Kael, dizendo que ela frequentemente associava gays à promiscuidade. Kael, sempre irônica, fazia inúmeras piadas que, fora de contexto, poderiam facilmente ser consideradas insultos. Um crítico inglês, Andrew Sarris, dedicou 40 anos de sua carreira a difamar Kael. Quando ela publicou um de seus livros mais famosos, Kiss, Kiss, Bang, Bang, Sarris dedicou nada menos que oito colunas seguidas a detonar a crítica nova-iorquina. O mais famoso dos ataques foi uma resenha de oito páginas publicada pela jornalista Renata Adler no The New York Times Review of Books.
Foi demitida por ter sido uma das poucas a chiar contra A Noviça Rebelde logo no lançamento. Quase perdeu o emprego na The New Yorker com a crítica positiva do pornográfico Garganta Profunda e negativa de Terra de Ninguém, o primeiro Terence Mallick. Aliás, suas constantes alusões às cenas de sexo, que ela adorava e se divertia bastante em descrever, deram munição de sobra aos puritanos. Como adorava Martin Scorsese, Robert Altman e filmes policiais, foi acusada de fazer apologia à violência e ‘mitificar a máfia italiana’.
Outra briga gigantesca foi quando, convidada a escrever o prefácio do roteiro de Cidadão Kane que sairia em livro, fez um ensaio sobre as qualidades do texto de Herman J. Mankiewicz. Quem pegou em armas foi Peter Bogdanovich, que moveu uma campanha contra ela e as suas ‘difamações’ – curiosamente, ninguém contribuiu mais para a fama de Cidadão Kane quanto Kael, que sempre considerou Orson Welles um dos maiores diretores americanos de todos os tempos. Welles quase processou Kael.
Amor, Sublime Amor? Detestou. A Felicidade Não se Compra, do Frank Capra? Nada, horrível também. O que ela gostava era de M.A.S.H, do Altman, e O Último Tango em Paris, de Bertolucci, e sua famosa cena da manteiga. Atacou Clint Eastwood e seus filmes de Dirty Harry por serem fascistas. Kael dizia-se “uma liberal anti-comunista’’, ou seja, não pendia nem para a esquerda nem para a direita, mas atacava sem dó as pesadas produções conservadoras, de cunho religioso, usando uma de suas frases mais demolidoras: ‘fantasia direitista’. Diretor que ganhasse essa coroa sabia que seria desprezado por parte do público na seqüência. Até George Lucas, outro saco de pancadas de Kael, criou um general Kael, malvado, em Willow – A Terra da Magia, da qual foi produtor, em referência a ela.
Alérgica aos filmes engajados da esquerda, apaixonou-se, no entanto, por Michelangelo Antonioni, marxista declarado, depois de ter visto uma de suas obras-primas, A Aventura. Segundo Kael, Antonioni não acreditava na revolução, e seu olhar amargurado era o que havia de mais interessante para a surrada discusão pós-Muro de Berlim. Bergman não seria Bergman nos EUA sem Kael, apesar de ela ter restrições a Cenas de um Casamento. Também era chegada num filme trash – aliás, seu ensaio sobre o cinema B é um dos clássicos da crítica de cinema, fundamental para o resgaste que se faz hoje desse tipo de gênero.
Não deixava que criticassem os EUA pelo suposto mal gosto do país, com argumentos baseados numa pretensa e ilusória superioridade da ‘cultura européia’. E, claro, o cinema japonês só é cinema japonês, hoje, graças à ajuda inestimável de Kael, uma des suas mais venerandas admiradoras – mas ela de-tes-ta-va alguns filmes de Akira Kurosawa. Morreu em 2001 vítima do Mal de Parkinson, deixando a crítica de cinema na mão de três tipos de críticos: (1) os papagaios do mainstream; (2) os teóricos, com sua ‘logorréia vazia’, que só sabem citar outros autores e se expressam por termos como ‘diegética’; (3) a turma que adora tudo e nunca se posiciona por nada. A divisão é da própria Kael.