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Críticas

Cineplayers

O dilema Fassbinderiano.

8,5

Em O Medo do Medo (Angst vor der Angst, 1975), Rainer Werder Fassbinder contou uma história muito similar  “O Papel de Parede Amarelo”, clássico da literatura feminista americana de Charlotte Perkins Gilman. Em ambos, mulheres subjugadas por seus maridos entram em depressão pós-parto e lentamente começam a enlouquecer; se no caso de Gilman a mulher era condenada a alucinar em uma cama, a protagonista de Fassbinder torna-se progressivamente viciada em remédios, álcool, automutilação e infidelidade conjugal e se engaja em uma repetiação maníaca que a degrada fisicamente para livrar-se de um medo do desconhecido, uma sensação que a persegue constantemente e a que impede de tanto de ser uma mãe de família funcional quanto relacionar-se com o resto da família do noivo.

O Medo do Medo embarca com força na estética do melodrama, através da estilização pesada da misé-en-scene, com a utilização das cores e espelhos que cercam a protagonista provocando a todo tempo uma sensação de vertigem, como se ela não pudesse escapar de si mesma. A questão do olhar sobre a progressão histérica se dá além dos espelhos também através do olhar dos personagens coadjuvantes, como a sogra e a cunhada, que estarão sempre observando e julgando a personagem, transformando a mesma em uma “aberração”, situação esta impulsionada pela distância do marido e detonada pelo parto, onde a mesma faz tudo sozinha enquanto o marido assiste passivo.

Fassbinder, utilizando novas estéticas tradzidas pelo cinema moderno, ao mesmo tempo também mescla com os recursos expressivos do melodrama. Daí , a encenação em profundidade e os longos planos se impondo sobre as leis classicistas de montagem dialogarem com recursos como o uso da música, dos expressionistas enquadramentos e movimentos de câmera e na utilização dos elementos visuais; toda vez que a protagonista tem um ataque de pânico, a câmera mostra sua visão subjetiva distorcida através de uma “onda” que atravessa e distorce a imagem.

Medo do Medo pode ser descrito, em síntese, entre o encontro do expressionismo historicamente contido no melodrama através de diretores alemães como G. W. Pabst em A Caixa de Pandora (Die Büchse der Pandora, 1929) e Erich Von Stroheim em Cobiça e a profunda riqueza psicológica que Fassbinder herdou tanto da nouvelle vague que influencia seus primeiros filmes (como O Amor é Mais Frio que a Morte [Liebe ist Kälter als der Tod, 1969]), quanto de sua formação literária, através de Alfred Döblin, autor de Berlin Alexanderplatz, autor que fundia as tendências atuais das décadas de vinte e trinta, como a psicanálise, junto com o naturalismo profundamente social de Zola.

Porque, afinal de contas, o que distancia do melodrama tradicional, assim como seus grandes filmes fizeram, é escolher tratar não da burguesia, mas da classe média e da classe proletária da Alemanha destruída; as ambiências são poucas e ricamente trabalhadas tanto na plasticidade cênica quanto na claustrofobia dos enquadramentos, que sempre prendem a personagem sozinha em quadro, raramente compartilhando um mesmo quadro com outro ator e quando o faz, distancia-se através do foco seletivo e da profundidade de campo. A protagonista é essencialmente solitária até mesmo cenicamente, com o diretor raramente nos dando a possiblidade de vê-la tendo qualquer contato humano – mesmo na cama, com o médico amante, eles estão em dois planos diferentes, ela mais próxima, ele mais ao fundo, onde o diálogo se dá de forma estranha, onde apesar da intimidade, eles não parecem jamais tornarem-se pessoas próximas.

Os diálogos, em sua construção e exposição, são um primor do conflito melodramático, que se aproxima do universo de filmes como Martha, onde Fassbinder também utilizou a temática da esposa oprimida e do casamento destrutivo, se utilizando aqui tanto do conflito da protagonista, que busca entender seu medo inexplicável, quanto do marido alienado e estagnado que não lhe dá atenção. Junte a isso a temática social de Zola e a construção realista que clama por uma análise distanciada, como é típico do cinema pós-neo-realista; seus personagens não são para “se odiar” ou “se amar”, mas antes para serem compreendidos em seus problemas e contradições.

É daí que surge o aspecto riquíssimo de O Medo do Medo: o conflito que frustra a expectativa por jamais ter seu mistério respondido. Nós sabemos que o medo da protagonista é de muitas origens – social (o casamento como uma instituição ilusória e falida que oprime indivíduos que não acham que devam constituir famílias, ter filhos, levar uma vida classe média, mas sentem-se pressionados e obrigados, já que os coadjuvantes resignados definem-se como “normais” frente à “aberração”), psicólogica (o “mal-estar na civilização”, o diálogo profundamente interior que o filme levanta de maneira expressionista, promovendo perturbações diegéticas, isolando o personagem de comunidade e fazendo questão de enxergá-los enquanto indivíduos, profundamente únicos, resultado de escolhas, contextos e pré-determinações, como mentes singulares) e existencialista (você é o que você escolhe ser – se você termina com uma vida estagnada, a culpa é sua; dilema este que a protagonista, sempre se olhando em espelhos e sendo testemunha de vertiginosos reflexos, é obrigada a encarar e repensar) – mas Fassbinder nunca soluciona esse conflito.

É justo esse o trunfo do filme: através do elemento do mistério que não se responde, forma-se uma estrutura circular que, ainda que aproprie o suspense de só saber uma fração da situação, foge do didatismo e do cartesianismo óbvio. De certa forma, Fassbinder chega a conectar-se com Delírio de Loucura (Bigger Than Life, 1956), de Nicholas Ray, onde James Mason escolhia entre um remédio que o deixava vivo, totalitário e psicótico e morrer de dor, mas com sua gentileza inerente à sua personalidade. Em ambos, há uma equação amarga, no tocante à escolha individual, que a sensibilidade e a emoção é ligada a um prazo finito, ou seja, a morte. Os personagens que sentem demais são destruídos já que sempre são excessivos; porém, os que escolhem continuar vivos se vêem obrigados a tornarem-se “monstros”, os monstros da normalidade, progressivamente insensíveis e alienados, tornando-se voyeurs e juízes e não mais protagonistas de pesados dramas internos. Mas ao contrário de Ray, cujos personagens alegremente sacrificam suas próprias vidas em nome da paixão e tornam-se marginais justamente por isso, o personagem Fassbinderiano típico está em rota de autocolisão, já que seu desejo  sempre é sufocado pelas represálias dos terceiros olhares, pela autonegação que os muitos reflexos transparecem, pela opção covarde pela alienação. Se “o inferno são os outros”, o medo de viver parece ser a chave para entender o cinema de Fassbinder.

Esse expressionismo realista, que funde estilização e crueza, torna o Fassbinder de O Medo do Medo, ainda na fase inicial do estilo que definira para si, um diretor de interiores plásticos e claustrofóbicos, que fala de uma Alemanha tão real quanto subjetiva, onde o indivíduo não é apenas projeção, não é apenas ilha – mas antes, um responsável. Os personagens de Fassbinder não são apenas as vítimas sociais típicas do melodrama, onde suas escolhas apaixonadas os tornam marginais – mas tem que sofrer com o peso de suas próprias escolhas.

O tema do passado nazista, presente em muitos de seus filmes, já dá um pouco de ideia pelo que o diretor queria dizer por “responsabilidade individual”: é constante a impressão dos personagens terem que lidar e aprender com a noção de pactos faustianos que assinaram sem ter a noção exata de com o que, exatamente, compactuaram. No meio do caminho, são autodestrutivos, corroem suas relações sociais, tornam-se párias, sofrem e cometem preconceito; tentam chamar a atenção, quebrar a rotina, fugir do que os esmaga, raras vezes com sucesso. Comem o pão que o diabo amassou, muito pela própria responsabilidade; inconsequentes, ignoram o próprio passado, experimentam o papel de vítimas, apesar de muitas vezes serem juízes e algozes. Essa pathos do grotesco é justamente o que tornava seus filmes tão ambíguos e atrativos: impossibilitados de julgar, resta-nos acompanhar um filme de personagens demasiadamente humanos, não de situações espetaculares.

Aqui, Fassbinder cria uma fábula sobre a alienação, a alienação que engole a alienação, o pânico injustificado, a sensação que há algo profundamente errado mas que não nos é dado o direito de saber o quê. E é tudo isso que torna O Medo do Medo, justamente, um dos filmes mais perturbadores do cineasta alemão.

Comentários (10)

Bernardo D.I. Brum | sexta-feira, 15 de Novembro de 2013 - 03:16

Francisco, esse já tava no arquivo há um tempo. sugestão anotada. quanto ao Cassava, relaxa que eu tardo mas não falho, hahaha.

E Rodrigo, mais uma vez muto obrigado pelos elogios. Vontade não falta de fazer sobre Berlin Alexanderplatz, mas ainda vai ter que aguardar um tempo. um negócio monumental daqueles merece um texto à altura.

Francisco Bandeira | sexta-feira, 15 de Novembro de 2013 - 15:15

Muchas gracias, Brum! Hahaha e concordo com vc e o Rodrigo, Berlin Alexanderplatz merece mesmo um texto especial seu, assim como a maioria dos filmes do Fassbinder! 😉

Bernardo D.I. Brum | sábado, 16 de Novembro de 2013 - 00:19

por mim eu já teria escrito sobre toda a filmografia do Fassbinder! hahaha
mas é aquela, como ainda não tou nem perto dos trinta anos, ainda tem um tempinho pra fazer antes de morrer...

Francisco Bandeira | sábado, 16 de Novembro de 2013 - 16:11

É, realmente tem uns cineastas que você quer escrever críticas sobre todos os filmes dele! Billy Wilder, Fassbinder, Cassavão, Bergman, Kurosawa e outros... Hahaha fascinante, até lá, vai ficar com os cabelos brancos, mas você consegue Brum! Hahaha

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