Uma das quatro obras que Fassbinder realizou em 1974 (ano do também influente Martha), O Medo Devora a Alma é um dos filmes que melhor traduz o espírito e o estilo Fassbinder de se fazer cinema: as cores fortes tiradas do melodrama hollywoodiano são o abrigo e a residência de personagens aberrantes, em grande parte pessoas feias e miseráveis, atuando de forma quase imóvel, calculada e econômica, em cenas milimetricamente planejadas e decupadas para atingir um efeito plástico que, no todo, é um dos componentes decisivos para compor a dramaturgia notadamente desdramatizada, fria e distante responsável por criar o clima pesado, nada abrasivo e desesperador de suas obras.
Nessa refilmagem bastante livre do clássico Tudo o Que o Céu Permite, obra-prima de Douglas Sirk que enfocava a paixão de uma viúva por um homem bem mais jovem, Fassbinder tirou a história do subúrbio norte-americano e colocou na Alemanha dos anos setenta, um país ainda em ruína, dividido em dois, recuperando-se da guerra que perdera há algumas décadas, carregando cicatrizes de um passado recente e vergonhoso.
Não à toa, o diretor inclui também na história o fator racial: saem uma conservada Jane Wyman e um Rock Hudson no auge do seu período “sex symbol” e entram uma senhora já bem gasta pela idade, mãe de três filhos que, quando para um dia em um bar de segunda categoria onde imigrantes costumam beber, acaba se apaixonando perdidamente por um marroquino bem mais jovem que ela. A partir daí, a mesma se tornará uma pária em seus círculos sociais, que sempre dirão o que pensam sem sutilezas, cometerão atos agressivos e gratuitos e encararão os dois com uma expressão neutra. Com a mesma expressão neutra que Emmi e Ali recebem as pesadas represálias.
Conceito que já começara a exercer em As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, a antinaturalidade de Fassbinder – claramente encenada para causar estranhamento no espectador com as expressões quase esvaziadas e tom de voz moncórdico dos atores – seria uma proposta utilizada de forma cada vez mais radical em suas obras. Junto com o aspecto visual – a perspectiva sempre demarcando sombras e formas geométricas, o figurino (ou ausência do mesmo) dizendo mais sobre a personalidade dos personagens do que recursos simples de caracterização – os filmes de Fassbinder escapam do simples comentário social anti-preconceito ao qual tantos diretores se rendem de cabeça e, antes de tudo, era um cinema estética e narrativamente, avesso ao modelo institucional, brutal e
uniformizante.
Antes de mais nada, O Medo Devora a Alma é um filme sobre paixão e negação de si mesmo; sentimentos esses velhos como a humanidade que impedem que a obra tenha um viés moralizante e inocente. Emmi e Ali são personagens com falhas de caráter; a mesma tenta mostrar o marido alguma vezes como uma espécie de troféu para as amigas solteironas viúvas da mesma idade, enquanto ele começa a trair Emmi com uma mulher de
idade próxima à dele. Por mais forte que seja a paixão, ela os transformam também em criaturas amaldiçoadas, em uma “velha tarada”, em um “imigrante abusado”. A solidão e o isolamento tornam o filme e seus ambientes rústicos cada vez mais pesados e fechados.
O ritmo lento é minucioso em destruir uma sociedade ocidental supostamente livre e democrática; é nítido nessa obra, assim como em várias outras de Fassbinder (Lili Marlene, O Casamento de Maria Braun, O Direito do Mais Forte é a Liberdade…) o homem não apenas como vítima social, mas também como catalisador da própria desgraça. O flagelo nazista ainda açoitava a Alemanha dos anos setenta – a sociedade onde vivem é autoritária, racista, indiferente aos anseios e receios dos indivíduos – tornando seus próprios indivíduos em aberrações, com vergonha de si mesmo, que passarão a obra toda tentando achar um correspondente, alguém que os compreenda – muitas vezes para se frustrar no final.
Se Herzog punha o desejo e o sonho acima da racionalidade e da realidade em seus filmes brutais e Wenders contemplava melancolicamente a angústia dos indivíduos que atravessavam estradas que não davam em lugar nenhum, Fassbinder é a terceira via do cinema alemão, a ressaca moral furiosa, as escolhas erradas pagas ainda em vida, o encontro inevitável com a própria destruição. Os dramáticos títulos que o diretor escolhia – O Amor é Mais Frio que a Morte, Eu só quero que vocês me amem, O Assado de Satã, Em um Ano de 13 Luas, e aqui, O Medo Devora a Alma – descreviam bem tanto o universo diegético quanto a forma que o artista via o mundo: frio, distante, violento e vicioso. E a única forma que achou para se rebelar contra o que via, foi fazer cinema. E os seus
quarenta e três filmes entre 1969 e 1982, ano da sua morte, atestam: como poucos tiveram coragem de fazer.
Cinema de coragem é um bom final para um dos cineastas mais legais de acompanhar a carreira. Do estranhamento até chegar a proximidade. Grande texto para um grande filme, já era hora.
Belíssima crítica! Despertou minha vontade de rever o filme.