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Matador de Ovelhas, O

(Killer of Sheep, 1978)
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Os sonhos de liberdade

10,0

Quando Stan e sua esposa finalmente se abraçam, se rendem a um momento rápido de carinho e intimidade, enquanto ecoa ao fundo a voz de Dinah Washington em This Bitter Earth, o enquadramento escolhido pelo diretor Charles Burnett procura englobar apenas a figura do casal contra a janela, assim como o abajur da sala de estar. Ela, a esposa, apaixonada, frustrada; ele, o marido, apenas desiludido, rendido, distante. A canção melancólica chora ao Senhor por essa terra amarga, por essa juventude perdida na labuta, por essa vida que tão cedo perde o propósito. A síntese da ideia de O Matador de Ovelhas (Killer of Sheep, 1977), filme de estreia do diretor, talvez resida nessa cena: a ideia de família, de lar, quebrada pelos personagens unidos em um abraço, mas visivelmente distantes, incomunicáveis, por algo que vai além dos dois.

Realizado dentro dos moldes deixados pelo neorrealismo italiano, com maior parte do elenco de atores não profissionais e equipe técnica improvisada por figurantes e amigos do diretor, O Matador de Ovelhas voltava sua atenção para a o dia a dia da população negra na periferia de Los Angeles, através do olhar de Stan (Henry G. Sanders), um operário de um matadouro. Trabalho de formação de Charles Burnett para a Universidade da Califórnia, com um orçamento irrisório, o filme pegava carona na onda do cinema de fundo social que despontava durante o boom da Nova Hollywood, e ecoava os acontecimentos do Levante de Watts, uma série de manifestações da população negra em Los Angeles em reposta à ação truculenta e racista da força policial contra um rapaz da comunidade.

A época favoreceu muito o nascimento desse trabalho hoje tão importante e cultuado, uma vez que entre os anos 1950 e 1960 entraram em evidência nos EUA nomes como Martin Luther King e grupos como os Panteras Negras, organização política que defendia a resistência contra a opressão dos negros, a fim de proteger a população contra a violência policial. O país comemorara há pouco tempo o centenário da abolição da escravidão, mas as tensões raciais ainda eram muito fortes e arraigada, e a segregação ainda era uma realidade recente. Isso se refletiu na cultura e pavimentou o caminho para o surgimento de movimentos importantes como o blaxploitation, filmes de gênero realizados, atuados, dirigidos, protagonizados por artistas e profissionais negros, que tratavam do interesse particular deles a fim de conquistar um espaço de maior representatividade na cultura, como já havia acontecido em maior escala na música (com o jazz e o blues, por exemplo), e assim também denunciar atitudes racistas que ainda eram (e são) muito recorrentes. A ideia era desvincular um pouco o policial branco da figura de herói/mocinho e trazer personagens negros em papéis de destaque, protagonismo, dando voz a uma população até então marginalizada ou relegada a papéis coadjuvantes ou vilanescos no cinema americano.

Burnett se favoreceu dessa efervescência cultural muito rica da época, mas não seguiu exatamente o caminho do cinema de gênero trabalhado no blaxploitation. O Matador de Ovelhas tem um formato mais intimista, um drama cotidiano que se aproxima mais do cinema neorrealista e que também trata das questões da população negra, mas através de uma perspectiva mais sóbria e sem grandes artifícios técnicos, pouca manipulação de imagens e uma dramaturgia quase amadora, uma vez que maior parte dos seus atores não passavam de moradores do bairro Watts, que emprestaram de sua identidade e parte do tempo livre para colaborar com Burnett na realização do longa-metragem. Mais do que um trabalho temporário, aquilo foi para eles um exercício de simulação do próprio dia a dia. Esse pioneirismo e senso de representatividade foi essencial na formação de cineastas como Spike Lee.

A escolha de abordagem de Burnett foge um pouco da inflamação política e repousa sobre a força de se trazer uma ideia forte por via da contemplação do cotidiano. Uma vez diante da rotina amarga de Stan, poucas conclusões sobre o racismo ainda inerente na América precisam ser verbalizadas. Não é somente a violência, a marginalização, a falta de oportunidades, mas o que comove o personagem e por consequência nos comove também é a total ausência de perspectivas de uma vida mais digna – seja ela profissional, familiar ou pessoal. O diretor vai além da encenação de vida daquelas pessoas, não faz delas um mero objeto de observação de tese social acadêmica, mas aplica sobre a obra um olhar sensível, empático, de compreensão de mundo: seus sentimentos, seus sonhos, suas memórias, suas frustrações, suas desilusões, suas pequenas felicidades e pequenas tristezas diárias.

Stan vive nesse meio em constante estado de indiferença, exausto pelo trabalho pesado, atormentado pelas cobranças familiares, tentado por pessoas que o incentivam a uma vida mais fácil através do crime, assombrado pela esposa que não encontra mais em seu olhar a reciprocidade para o carinho que sente. De um lado, a melancolia do jazz, dos blues, em uma trilha riquíssima composta por muitos dos grandes músicos negros da época, e que inclusive foi um dos motivos para o filme demorar décadas até poder ser exibido comercialmente, uma vez que não havia como arcar com as despesas dos direitos autorais. Do outro lado, um traveling belíssimo acompanhado as crianças correndo ao longo do chão de terra, contra o sol, sorridentes, indiferentes à realidade que as espera cedo ou tarde. Existe a tristeza e a melancolia em O Matador de Ovelhas, mas existe também e principalmente a vida, a luta por ela, a urgência por ela, e isso tudo ressoa até hoje, em uma América que ainda se vê diante de notícias aterrorizantes, como o assassinato racista e covarde de George Floyd, e o surgimento de movimentos de combate de repercussão internacional, como o Black Lives Matter. Enquanto o que precisa mudar não muda, a luta continua, e obras-primas como essa ressurgem ainda maiores e atemporais.

       Parte do Especial Cinemas Negros 

Comentários (4)

Reginaldo Almeida | quinta-feira, 09 de Julho de 2020 - 13:00

Obriga pela critica HEITOR ROMERO ! Filme realista e emocionante. a minha nota é a mesma da sua.

Igor Guimarães Vasconcellos | segunda-feira, 20 de Julho de 2020 - 06:02

Eu lembro exatamente da primeira vez que vi este filme, há uns bons anos atrás um amigo me disse:
Tenho um filme de terror que acho que é bom.
Ao começar já logo noite que não era terror hahaha . Ficamos os dois fascinados.
Terminamos a sessão com aquela sessão de êxtase.
Um tempo depois, mais maduro, vi outra vez, e como vc defende, é um dos filmes mais importantes para a formação de uma identidade negra complexa no cinema.
Cada minuto, cada enquadramento é um processo, um caminho de reflexão, uma densidade nos rostos dos personagens impressionante .
A trilha sonora é impecável mesmo

Leo | sexta-feira, 24 de Julho de 2020 - 20:30

Puta que pariu Heitor, que critica foda. Parabéns.

Heitor Romero | segunda-feira, 27 de Julho de 2020 - 10:45

Obrigado, meninos ;)

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