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Judas e o Messias Negro

(Judas and the Black Messiah, 2021)
7,7
Média
117 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Rugidos Revolucionários

8,0

Mulheres e homens pretos organizados, de cabeça erguida, instrumentalizados intelectualmente, inspirados pela guerrilha revolucionária cubana, portanto armados, com energia e disposição de sobra para apontar o gatilho à lei e gritar: “Chega! Se você continuar matando os meus, eu vou matar também. Se eu não tiver os mesmos direitos civis que os seus, eu vou tomar na força."

O segundo longa-metragem de Shaka King está inserido no momento mais atroz dessa luta, em 1968, depois do assassinato dos líderes Martin Luther King e Malcolm X, além dos incidentes envolvendo Bobby Seale (O oitavo nos “Sete de Chicago”) e a prisão Huey Newton (Morte do oficial John Frey, de Oakland), os jovens negros que viam nessas figuras fontes de inspiração perderam o senso de orientação. O massacre era atroz, e o governo americano respondia a organização social negra com uma desmascarado massacre, como bem registra A 13ª Emenda (13th, 2016), de Ava Duvernay. Nesse contexto de medo instaurado, ascende a figura do Black Messiah (Daniel Kaluuya), um dos oradores mais eloquentes da história do Movimento Negro: o jovem Fred Hampton, de formação intelectual marxista e ativo no Black Panther desde os seus 18 anos.

Enquanto o “Messias” via na ausência de seus referenciais uma razão para firmar-se na batalha, empoderar-se e assumir-se como uma das lideranças do partido, vemos, em contrapartida, um jovem William O’Neal (Lakeith Stanfield) sem as mesmas motivações revolucionárias: no auge de seus 17 anos, sonha em ser um “tira”, costuma entrar em bares frequentados por negros e fazer batidas policiais com um distintivo falso do FBI. Numa dessas, termina apanhado pela própria polícia, e conhece Roy Mitchel (Jesse Plemons), ambicioso investigador que para livrar-lhe a cara da prisão, propõe-lhe o trabalho infiltrado.

Diferente da divertida e inflamada sátira de Spike Lee em Infiltrado na Klan (2018), aqui não há comédia; o trabalho de O’ Neal é perigoso, ninguém entra pela metade, a formação disciplinatória exige imersão total. O partido passa boa parte da narrativa a procurar o rato dentro de seu grupo, mas a dedicação do personagem vivido por Stanfield é quase tão intensa quanto a de seu mentor, tanto que em pouco tempo assume uma importante posição de segurança.

Críticos do crítico dirão: “é uma produção milionária, com tudo que há de melhor no cinema atualmente!“ É verdade, mas isso não é demérito, pelo contrário. Não é fácil segurar a mão de toda a aparatagem técnica que se tem disponível, principalmente ao tratar-se de uma estreia em Hollywood dentro de um roteiro tão delicado e importante. King domina o set: a direção de fotografia de Sean Bobbit (reconhecido entre outros trabalhos pela parceria com Steve McQueen) proporciona sequências memoráveis, chamando muito a atenção a segurança em abusar dos primeiros planos sem apelar e a variação precisa de enquadramentos; cores vibrantes, trilha sonora e figurino impecável rememoram o documentário Black Panthers (1968), da Agnès Varda.

É claro ao ver o filme que toda a equipe estava muito envolvida com o projeto, a empolgação revela-se em todos os trunfos tratados, e talvez seja fruto dos maiores problemas. A escolha excessiva em prolongar alguns detalhes que fugiam da narrativa principal, mas que fazem parte do arcabouço histórico do período, deixam o longa irregular narrativamente, além disso, nota-se o mal aproveitamento do Ashton Sanders no papel de Larry Robertson, e a prolongada romantização (fofa e com boa química, é verdade) da relação de Hampton com Deborah Johson (Dominique Fishback).

A escolha do realizador em tomar a História para o seu roteiro mostra-se acertada. Além de propor-se educativo sobre um período silenciado, King tem mão pesada na condução, o que transforma o seu longa num filme cinematograficamente interessante. Utiliza-se da linguagem documental quando convém e leva o longa muito além de uma peça histórica nua e crua, a marca do grande autor de ficção registra-se na técnica brevemente citada, mas fundamentalmente pela escolha em partilhar o protagonismo narrativo.

Enquanto a mídia preocupava-se em televisionar a insanidade no Vietnã, estourava uma guerra civil dentro do território americano. Numa mistura entre sonho, dúvida, medo e confusão, dois jovens negros tentam defender-se como podem, enquanto um escolhe o coletivo para armar-se, muito por conta de sua formação acadêmica, o outro precisa se virar para poder abraçar o que está na sua visão. Ao negro não é permitido errar, o encontro dos dois, como muito bem sabemos é fatal. King é sensível para entender que na guerra não há vilões e nem heróis, humaniza os caminhos, dá ao “Judas” a culpa que de si mesmo deu conta, mas não temos direito de colocar cruzes, mártires devem permanecer vivos.

Judas e o Messias Negro (2021) não deixa o espectador passivo. O filme cria um eco na memória, e o tradicional grito de Hampton mantêm-se aos rugidos: “eu sou um revolucionário”.

Partícipe do Especial Cinemas Negros

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