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Críticas

Cineplayers

A trilogia loser chega ao fim.

8,5

Em Heróis de Ressaca (The World's End, 2013), Edgar Wright mais uma vez aposta na extrema estilização, fazendo da montagem (de técnicas como o raccord, falso raccord e a elipse) e dos enquadramentos e movimentos de câmera parte integrante da narrativa que mais uma vez promove um choque entre os desejos e devaneios de seus protagonistas e o mundo que os cerca, que não necessariamente correspondem à maneira que eles desejam enxergar.

O evento sobrenatural ou extraordinário é sempre o que faz o protagonista ter que se dar conta de sua própria condição de pária e da sua inabilidade de atender aos padrões, tendo que passar da inércia alienante de um indivíduo deslocado, condição inicial de todos os seus protagonistas, para completar a jornada como um rebelde “ativo”, enfrentando as ameaças extraordinárias que acabam sendo o ponto mais caricatural e grotesco dos mundos que os puseram à parte.

Novamente se reaviva a questão de uma imaturidade socialmente desprezada, individualizante e egoísta contra uma maturidade sempre clamada, uniforme e excessivamente preocupada. Em Todo Mundo Quase Morto (Shaun of the Dead, 2004), o protagonista via-se obrigado a amadurecer emocionalmente para deixar de fazer parte de uma horda de zumbis alienados, sem individualidade própria; em Chumbo Grosso (Hot Fuzz, 2007), o policial disciplinado e ordeiro vê-se obrigado a encarnar o herói de cinema de ação para combater a elite de uma pequena cidade.

Aqui, o protagonista interpretado por Simon Pegg sonha em refazer com seus amigos em sua cidade natal uma maratatona de bares que quase conseguiram completar no passado. Os dois empecilhos que enfrenta é que primeiro, ele é o único que continua com a vida boêmia e despreocupada, ao contrário de seus amigos de adolescência, agora todos responsáveis homens de família pouco propensos feito ele de chegar até o bar “The World's End”.

O segundo é que a cidade foi invadida por alienígenas e virtualmente todos os habitantes foram abduzidos e substituídos por réplicas obedientes e pacíficas, numa referência ao filão de filmes iniciado por Vampiros de Almas (Invasion of The Body Snatchers, 1956), de Don Siegel. Alienígenas estes puristas e moralistas, apropriando-se de recursos como bases subterrâneas e fortes luzes para expressar seu desejo de fazer uma sociedade “pura”, “justa” e “uniforme”, ou seja, tudo o que contesta o personagem de Simon Pegg, bêbado sem vida social com objetivos fúteis e nem um pouco nobres.

Com esse protagonista elencado deve-se necessariamente pela lógica construída no filme torcer para um “mau-exemplo” - cuja lógica é invertida na crescente e determinada degradação física e mental do protagonista para defender a glória individual e egoísta que seus protagonistas reclamam – de que cada um, se assim quiser, não se comprometa com nada e frequentemente estrague tudo, desde que feito com sinceridade. “Meter o pé na jaca” como um direito inalienável.

Wright constrói seu universo particular onde losers devem procurar uma nova forma de desajustes em ordem de não serem “uniformizados” baseado em pura cultura popular, com o efeito cômico sendo obtido pela “destruição” e então ressignificação de obras anteriores que levavam seus recursos estilísticos como efeito dramático.  Ecoam em enquadramentos, cortes, músicas e diálogos a aura trangressora do cinema comercial classe B feito entre a década de cinquenta e setenta: do sci-fi humilde dos primeiros filmes sobre invasão alienígena à cultura motoqueira e low rider, Heróis de Ressaca reinventa universos separados – dramas íntimos e cinema-catástrofe – em apenas um. Seus protagonistas correm por suas vidas e correm pela superação de seus problemas, confundindo as duas noções e por vezes preterindo uma a favor da outra.

Repaginando de forma irônica a jornada heróica onde seus protagonistas correm riscos em duas esferas – pessoal/emocional e física, encontro da comédia dialogada de roteiro e a comédia visual obtida das estratégias narrativas possíveis de se operar com tempo e espaço – após eleger seus heróis, o filme de Wright frequentemente os explica e justifica através de tempo, espaço e montagem, com a câmera tornando-os indivíduos e a montagem conferindo-os e destacando seus movimentos, com os diálogos rápidos e rítmicos ilustrando os altos e baixos da vida “perdedora”, obsessão do trio Wright, Pegg e Frost desde o seriado cult Spaced.

A cultura popular vista não pelos olhos dos heróis, mas dos medíocres, alienados e vagabundos encontra sua derradeira e terceira versão neste filme que encerra a “Trilogia dos Três Sabores de Cornetto”, onde referenciando a trilogia de Krzystof Kieslowski Wright desde o início mostra a conexão ordinário/extraordinário através dos sabores que seus personagems provam simbolizando o filme que habitam (morango/vermelho para zumbis, baunilha/azul para polícia e menta/verde para ficção científica).

Com o precedente aberto pelo cinema popular dos anos noventa, que fundia subjetividade e indústria, autoralidade e gênero, Wright fala de desajustados não muito distantes dos gângsteres violentos e entediados de Tarantino ou dos slackers desocupados e angustiados dos Irmãos Coen. Gente que só vê chance de escapar de vidas miseráveis e sem perspectivas quando confrontam-se de vez com o lado grotesco e exagerado de tudo que odeiam. E nessa tênue linha entre comer sorvete e correr por sua vida é que Wright, mais uma vez, levanta a bandeira da comédia estilística e referencial como símbolo da defesa de uma arte particular, não comprometida com nada além dos próprios dramas e com nada a dever além de suas próprias referências. Seja perdedor, seja herói.

Comentários (11)

Landerson DSP | quarta-feira, 18 de Junho de 2014 - 12:57

Ótima crítica, só senti falta da menção a Scott Pilgrim Contra o Mundo.

Landerson DSP | segunda-feira, 23 de Junho de 2014 - 14:50

Assisti ontem. Para mim, o melhor da trilogia. Pode até não ser o mais engraçado dos três(esse posto pertence ao Hot Fuzz que talvez tenha sido a grande comédia da década passada), mas é aquele que possui maior coração. Simon Pegg prova que não só é um grande comediante, mas também um puta ator. Espero que o próximo filme do Wright saia logo.

Raphael da Silveira Leite Miguel | sexta-feira, 27 de Junho de 2014 - 23:43

Não ví Hot Fuzz, mas também acredito que esse seja o pior dos três mas que não deixa de ser divertido. É bem como o Anderson falou: tem um quê nostálgico como "American Pie - O Reencontro" no início e mais para o fim vira um "Eles Vivem" menos genial.

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