Entre comer e ser comido, o estereotipado descobre uma terceira via para garantir sua dignidade.
Antes da sessão de estréia de Estômago no Festival do Rio 2007, pensei que veria apenas mais uma história sobre as agruras do nordestino que migra pro sudeste, e realmente não dá pra negar que o estereótipo existe. Mas digamos que a interpretação de João Miguel unida ao roteiro, que busca o paralelismo de duas histórias sobre o então cozinheiro Raimundo Nonato, ajudam o personagem a escapar do papel que o cinema tem reservado a ele: o de bobo.
O filme começa com Raimundo contando uma das histórias sobre o surgimento de algum queijo nobre, com um sotaque irremediavelmente nordestino. E um dos sabores deste filme é justamente seus sotaques, e pra quem se liga nisso, a personagem Íria (Fabiula Nascimento) não deixa Raimundo sozinho, e recheia a história com suas gírias paranaenses e também com a força de sua presença. Inclusive, tive a oportunidade de encontrar-la em outro dia de Festival e fiz questão de elogiá-la por sua atuação e simpatia: é difícil não sair da sessão sem gostar/odiar sua personagem.
Primeiro longa-metragem do curitibano Marcos Jorge - que escreveu o roteiro em parceria com Fabrizio Donvito - traz como curiosidade o fato de ser uma co-produção ítalo-brasileira, coisa que segundo o próprio diretor foi muito importante para a existência do filme. Em contrapartida é fácil perceber o tom propagandístico-didático, nas longas lições sobre culinária, queijos e vinhos italianos de Giovanni (Carlo Briani), o dono do restaurante onde Raimundo Nonato (João Miguel) começa a obter as armas com a quais conseguirá controlar o mundo ao seu redor. Perceber isso incomoda um pouco, mas quando a trama transcorre solta, a gente até esquece esse detalhe.
Não ponhamos a carroça na frente dos bois: Em dois tempos diferentes acompanhamos Raimundo Nonato adaptando-se aos novos ambientes em que se encontra, conhecendo pessoas, conquistando espaços e se impondo, a despeito do que se possa pensar dele à primeira vista. Uma das histórias transcorre na cela que ele divide com outros presos, em que é preciso ser mais esperto do que todos pra ter um pouco de paz, sem sabermos como ele foi parar ali. A outra acontece entre o balcão de um boteco em que ele começa a fritar coxinhas de galinha pra pagar a estadia no quartinho dos fundos, e depois na sua ida para a cozinha de um restaurante italiano, onde ele passa a refinar o talento que desconhecia ter. Nesse intermezzo, Íria come uma, duas, várias das coxinhas e depois dos pratos de massa que Raimundo lhe prepara. Em troca disso, eles se fazem companhia na cidade na qual nenhum dos dois é totalmente aceito.
Seu Giovanni percebe o talento de Raimundo e não mede esforços para ensiná-lo não só a mecanicamente preparar os pratos, mas a entender a função de cada sabor dentro deles. E na cena do açougue dá pra sentir que alguém será comido em algum momento. Ou até em dois. É como diz a ficha do filme no IMDB: no grande restaurante da vida eles escolhem quem come e quem vai ser comido, e Raimundo então aprende a cozinhar. Usando suas habilidades ele consegue manipular o cotidiano, que nem sempre é simpático com os mais fracos.
Resguardado por sua aparente fragilidade, o cozinheiro-personagem transpõe para tela a velha fábula do lobo em pele de cordeiro, menos por uma maldade intrínseca do que por necessidade de sobrevivência. Afinal de contas, quem pode negar a ele um pouco de dignidade?
Além de João Miguel e Fabiula Nascimento, outra interpretação que merece destaque é a de Babu Santana como o "intocável" Bujiú, chefão da cadeia que pensa ter Raimundo sob seu comando, mas que sem saber é manipulado pelo ‘inofensivo’ cozinheiro.
Denunciando de forma não-explícita temas da vida urbana como a migração, o preconceito social, a prostituição e a realidade carcerária, onde a troca de favores é a única via para a sobrevivência, Estômago tem sua força na qualidade das atuações e principalmente no carisma de Raimundo Nonato, porque torcer pelo lado mais fraco é sempre mais interessante do que saber de cara quem vai ganhar o jogo.
Excelente crítica... porque torcer pelo lado mais fraco é sempre mais interessante do que saber de cara quem vai ganhar o jogo [2]