Tudo o que difere essa refilmagem de The Crazies (no Brasil O Exército do Extermínio, um dos mais contundentes e assustadores filmes sobre a violência em sociedades já filmado, dirigido por George Romero em 1973) de seu filme original é sintomático. Sintomas de um cinema cada vez mais genérico, conformado, preguiçoso e, com o devido perdão, burro, o que por sua vez nada mais é do que reflexo do subdesenvolvimento cultural do público em geral, que vai gradativamente se nivelando – pra baixo. É duro dizer, mas andamos, nós, os homens, com uma grande preguiça de pensar. A TV mastiga informações, o cinema nos enche de produtos formulaicos, os best-sellers cortam palavras de seu vocabulário. Daqui uns tempos, como diria o falecido Saramago, retornamos aos grunhidos.
Dito isso, não se pode simplesmente chamar A Epidemia (The Crazies, 2009) de mau filme, levantar da cadeira e ir comer uma pizza. Se esquecermos que existe o original (e a memória também anda meio fraca, não é mesmo?) pode-se dizer que aqui está um filme de gênero minimamente eficiente, com sequências-chave interessantes e algumas boas soluções para cenas que, até então, não saiam do lugar-comum – a da faca na mão é engraçadíssima. Diverte, entretém, e a experiência se evapora com o ligar das luzes. Bem, primitivamente a relação espectador / filme se dá exatamente dessa forma, mas nem tudo é Avatar (Avatar, 2009) ou À Prova de Morte (Death Proof, 2007).
Pois a carcaça do conteúdo do filme original está ali, embutida na história de uma cidadezinha que é contaminada com um vírus experimental desenvolvido pelo governo e vê sua população enlouquecer aos poucos e, depois da intervenção do exército, ser apagada do mapa numa gigantesca queima de evidências, mas 37 anos se passaram, o caos social se expandiu, a violência come cada vez mais solta nas ruas e esta atualização da alegoria de Romero à Guerra do Vietnã consegue passar sem acrescentar absolutamente nada – e eu grifo o absolutamente e o nada com toda a ênfase possível – ao que o original brilhantemente construiu ao radiografar a questão da violência e suas origens nos meios sociais. Pelo contrário. O que acontece aqui é pura regressão.
Essa regressão nos leva ao buraco-mais-embaixo de A Epidemia. Enquanto O Exército do Extermínio permanece aplicável a qualquer relação de violência social, seja guerra do narcotráfico, conflitos por “terras santas” ou busca de armas de destruição em massa no deserto, A Epidemia soa o tempo todo como um genérico e limitado filme de fuga apocalíptico com heróis, vilões, situações manjadas e a “brilhante” ideia de praticamente se desfazer das situações paralelas e se fixar na ação de um pequeno grupo de protagonistas, o que corta o número de choques do original pela metade já que, evidentemente, boa parte das sequências acaba sendo previsível e tediosa por sabermos que ao final de tudo o vencedor será o mocinho – as poucas vezes em que isso não ocorre são os momentos em que o filme impressiona –, o que também limita as mortes a um número bem insatisfatório, com apenas uma ou duas causando real indignação em relação ao que a história propõe.
A verdade é que, pra quem acompanha o cinema hollywoodiano e suas constantes atualizações de filmes antigos – e agora até os filmes B estão sofrendo com isso; daqui uns dias refilmam Glen ou Glenda (Glen or Glenda, 1953) – tudo isso não deve ser novidade. Mas a reflexão é necessária. Breck Eisner parece ter visto os filmes de Romero e aprendido a maquiar, simplesmente. Se bem que até mesmo a caracterização dos “malucos” consegue ser de uma tosquice incrível – gente, o que são aqueles olhos coloridos?
Mas os menos mal-humorados ainda podem tirar proveito do filme, um benefício que Eisner e sua equipe conseguem extrair do baixo nível do cinema comercial de horror em Hollywood. Algumas sequências isoladas rendem momentos de tensão, existem duas ou três mortes criativas e o trabalho de câmera é correto, contando com alguns bonitos planos estáticos que ultrapassam os três segundos de duração diversas vezes, o que por si só é uma conquista num período onde os filmes de horror cada vez mais parecem editados por açougueiros. O maior mérito de A Epidemia é não repetir certos equívocos formais de nosso cinema atual, mesmo que soe ainda mais inofensivo se lembramos que, discretamente, belos filmes como Vírus (Carriers, 2009), com quem divide superfície genérica, foram lançados no circuito nacional em 2010. Aí vai de cada um: da indignação ao conformismo, A Epidemia abre espaço para reações extremas. Ou então, que se respire bem fundo e encontre-se um meio-termo, pra que a epidemia da regressão não nos faça enlouquecer e sair botando fogo na casa.
Muito boa a crítica...
Concordo que se compararmos com o original de Romero, The Crazies 2010 é muito inferior. Mas se analizarmos o filme apenas por ele mesmo, acho até que é bem superior à pelo menos metade dos títulos que são produzidos hoje no gênero. Destaque para as cenas de Bill perseguindo a esposa e o filho e do namorado de Becky no celeiro, além da cena do jogo de baseball e a já citada cena da faca na mão.