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Críticas

Cineplayers

A sincera e incomum visão de Burton sobre o mundo.

10,0

O cabelo é desgrenhado, a postura desleixada, as roupas estranhas, o comportamento quase sempre introvertido, e a impressão primeira que o cineasta Tim Burton desperta é a de um personagem fugido de alguma ficção bizarra. Ainda assim, sua relação com seu público é a de inesperada empatia e carinho. Para quem conhece a obra do diretor americano, não é difícil interpretar essa imagem como a de um artista muito sensível e com uma visão única de mundo, em especial quando reconhecemos seu alter-ego na obra-prima Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990).

Edward (Johnny Depp) é quase tão incompreensível quanto Burton. Montado por um cientista solitário (vivido por Vicent Price), que vivia dentro de um castelo no alto de uma colina, ele é quase um ser completo, se não fosse pelas tesouras que possui no lugar das mãos. Antes de poder finalizar sua criação, o inventor morreu e deixou Edward sozinho e incompleto. Isolado da civilização, o homem com mãos de tesouras foi educado como um cavalheiro, mas sua aparência é monstruosa e qualquer contato direto com ele é potencialmente perigoso.

As semelhanças estabelecidas através desse ponto de partida são muitas e bastante óbvias. Como narrou no semi autobiográfico curta de animação Vincent (idem, 1982), Burton nunca foi uma criança comum. Criado na ensolarada Califórnia e fissurado por tudo que envolvesse morte e escuridão, ele não foi bem compreendido pelos seus pais, que não conseguiam enxergar a sensibilidade por trás de seu comportamento atípico. Mais difícil ainda foi para ele seguir carreira em Hollywood, a terra dos sonhos, das luzes. Avesso ao colorido e superficial de lá, logo foi considerado como um outsider ao buscar beleza nas imperfeições. 

Com Edward também não foi muito diferente. Após ser descoberto pela vendedora de cosméticos Peg (Dianne Wiest), ele passa a morar na colorida e aparentemente perfeita cidadezinha interiorana que circunda a montanha onde vivia. A princípio, ele é visto como um tipo de sensação, uma novidade para os vizinhos quebrarem a rotina, até que aos poucos os verdadeiros preconceitos dessas pessoas veem à tona para mostrar que desde o início Edward não passava de uma ameaça para eles. Inocente a essa maldade, o homem só consegue enxergar o lado bom daquele lugar, em especial o de Kim (Winona Ryder), filha de Peg, por quem acaba se apaixonando.

Ambos, tanto Edward quanto Burton, são grandes artistas vivendo em um mundo intolerante. Burton tem seu cinema particular, recheado de personagens esquisitos e cenários fabulosos, e teve de enfrentar muita crítica negativa para conquistar um espaço de respeito, ainda mais por ter iniciado a carreira na Disney e com produções voltadas ao público infantil. Edward é um escultor nato que se utiliza de sua deformação para fazer o bem e extravasar sua veia artística. Apesar da incompreensão de muitos diante deu sua arte, tanto Burton quanto Edward procuram a aceitação.

O contraste estabelecido entre o universo sombrio de Edward e o colorido artificial da cidadezinha é um dos pontos mais fortes dentro dessa leitura de paralelos, e para que isso ficasse bem claro, Burton recorreu a uma concepção visual bastante plástica, como somente um conto de fadas poderia permitir. A direção de arte, cenografia, assim como os figurinos e a maquiagem, se configuram em cima de gritantes contrastes de cores e formatos. Os créditos iniciais já introduzem o pesadelo gótico do universo de Edward ao nos apresentar o gigantesco castelo mergulhado em escuridão habitado pelo personagem, repleto de estátuas assustadoras, teias de aranha, escadas em caracol, janelas assimétricas e sombras distorcidas projetadas em paredes de pedra. Nasce daí um abismo entre esse mundo assustador e a comunidade em que vivem Peg e Kim, marcada por construções provincianas, simetria perfeita, belos jardins floridos e habitantes sorridentes. É então que a grande sacada da obra se revela, quando Burton conduz o filme de tal forma que o colorido, o simétrico e o padrão se mostram o lado podre e o vilão do conto, enquanto a escuridão e as sombras do universo de Edward abrigam a inocência e a pureza de coração.

A cena que marca um encontro perfeito entre esses dois lados ocorre quando Kim dança na neve que sai da escultura de gelo em que Edward trabalha em esculpir o rosto de um anjo, através do movimento giratório e do ângulo rasteiro da câmera que entra no balé da personagem. Poético e apaixonante, talvez seja este o momento de maior inspiração e beleza de toda a carreira de Tim Burton e, por que não, um dos mais marcantes do cinema. A continuação desse momento de tamanha poesia, no entanto, conclui que o mundo não está pronto para aceitar o diferente.

Apesar de Burton negar veementemente qualquer semelhança que possa ter com seu personagem principal, é impossível não associá-los. Assim como foi difícil para ele crescer em um meio marcado pela incompreensão diante de seu jeito de ser, Edward é uma representação da difícil fase da vida que é amadurecer e conquistar respeito em uma sociedade taxativa, mesmo que para isso precisemos expor nossos mais berrantes defeitos, ou nossas “mãos de tesouras”.

Edward Mãos de Tesoura ainda marca o início de uma das parcerias mais longevas e bem sucedidas do cinema atual: Tim Burton e Johnny Depp. Depois desta produção, os dois já repetiram a dose em outros seis projetos, entre eles o maravilhoso Ed Wood (idem, 1994), e ainda há outros prometidos para o futuro.  É verdade que ultimamente o diretor não está em sua melhor fase; talvez tenha conseguido ser aceito por Hollywood e assim perdido nesse processo parte da beleza de sua criatividade e imaginação. Mas independente do que possa vir a acontecer daqui para frente, Burton já provou através de sua conduta, e através deste filme, que até o mais desajeitado e esquisito artista pode sobreviver e vencer nesse mundo que vive apenas de aparências.

Comentários (17)

Vinícius Aranha | quinta-feira, 12 de Dezembro de 2013 - 13:38

Sombras da Noite é puro abuso de autoridade do Burton, e divertidaço também. E Frankenweenie é um verdadeiro atestado de amor ao cinema.

Ravel Macedo | quinta-feira, 12 de Dezembro de 2013 - 14:07

Sombras da Noite tem umas ideias boas, mesmo, mas tem um humor bobo e irritante

Raphael da Silveira Leite Miguel | quinta-feira, 26 de Dezembro de 2013 - 13:46

Ótima crítica para esse lindo filme capaz de emocionar a muita gente. Saudades desse Burton... O último dele de alto nível foi Peixe Grande, e lá se foram 10 anos. Ano passado, tiveram Sombras da Noite (fraquíssimo) e Frankenweenie (como disseram: um suspiro, bom filme apenas).

Rodrigo Giulianno | sexta-feira, 14 de Março de 2014 - 23:27

Bons tempos né Sr Burton!!! Agora a coisa tá feia...mas vale a pena rever...gostei mais ainda

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