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Críticas

Cineplayers

A vida através da música.

9,0

"As canções, você sabe, são como fumaça. É algo que você não pode pegar com as mãos, qualquer coisa que lembra um lugar, um lugar qualquer, impalpável. Não é algo substancial como um guarda-chuva ou uma caminhonete". (Tom Waits)

O que o californiano Waits diz acima não poderia fazer mais sentido. Dado o caráter universal que uma melodia tem, qualquer indivíduo de qualquer país pode imaginar as pulsões de amor, dor, morte, desejo e melancolia através de uma simples música, sem ao menos precisar ler as letras. Canções carregam todo um caráter pessoal, redentor e subjetivo em si – caráter este construído através de literalmente séculos de memória afetiva.

Mas como a música, algo tão intangível, torna-se tão concreta nas nossas vidas? É o que Coutinho morre de curiosidade de saber, e seu novo documentário, As Canções (idem, 2011), é o resultado desse novo esforço em nome do encontro, da exposição e da narração de histórias. Agora, com a música no meio.

O objetivo era, através de entrevistas, saber a conexão de pessoas com alguma música específica – músicas de términos de namoro, trilhas-sonoras de relacionamentos, um pedido de desculpas aos que já foram... Como algo que você apenas ouve, não encosta ou pega, pode assumir proporções tão grandes em certas vidas?

Com cenário simples e abordagem direta, Coutinho está agora mais interessado na identificação do que na encenação. Esqueça as referências tanto a Edifício Master (idem, 2002) quanto a Jogo de Cena (idem, 2007) – guardam algumas semelhanças estéticas por ainda se tratar, afinal de contas, do mesmo diretor, mas Coutinho é daqueles que pode se orgulhar de poucas vezes se repetir, mesmo sem nunca perder a identidade.

São múltiplas narrativas se cruzando para um único ponto de convergência: as músicas que unem tantos sob uma mesma gama de sentimentos. Bossa nova, música brega, Chico Buarque, Jorge Ben... Relatos cômicos, trágicos, emocionantes e absurdos, extraídos com uma sinceridade rasgada de tipos que vemos na rua todos os dias – militares reformados, vendedores, aposentados, trabalhadores, religiosos, esportistas... Tudo isso com uma narrativa fluída que não precisa de muito além desses indivíduos comuns, que em algum momento de sua experiência já vivenciaram momentos dignos de serem transformados em cinema – nesse caso, com direito a trilha sonora.

Apenas um palco, uma cadeira, cortinas ao fundo e luzes diretas constroem o universo diegético minimalista de Coutinho. Através da narração apenas sonora dessas imagens e dos inúmeros relatos, ele deixa tudo nas mãos de nossa imaginação, da habilidade ou franqueza de narração dos entrevistados e da força com que cantam as músicas que escolheram. O lado transcendente do documentário é subjetivo para os dois lados – não estamos sabendo a verdade em si, mas uma visão da mesma, e deformamos em nossa cabeça as mesmas histórias que estão sendo contadas.

Os muitos personagens de As Canções partilham suas memórias, povoam nosso imaginário e querem nos jogar na mesma situação – rir, chorar, se embriagar, se apaixonar e sentir saudade. Todos nós já passamos por isso, e usamos a música para buscar esse “algo além”, para fazer o presente melhor ou mais suportável. Apesar de mencionar o tempo pretérito o tempo inteiro, As Canções anda sempre em frente; está vivo, com uma parcela de emoções próxima e palpável.

Desde Cabra Marcado Para Morrer (idem, 1985), não é mistério para ninguém o tom humanista de Coutinho. Os comuns, os marginais, os perseguidos, os medíocres. Não as autoridades, as instituições. A câmera dá a eles dignidade, força e magnitude. Quer saber dos seus valores, das suas crenças, dos seus medos e das suas angústias. Seus documentários, verdadeiras montanhas russas de emoções, de encenações e cortinas rasgadas, de fatos e reinterpretação dos mesmos e recordações, costuram um cinema que deixa de lado o que é objetivo para apostar no subjetivo, no individual, nos mínimos detalhes, no que é despercebido.

E é justamente por apostar nesse intangível, na tal “fumaça” a que Tom Waits se referia, poucos cinemas têm uma força emocional tão grande. As Canções começa, termina, faz e acontece, emociona, esbraveja, perdoa, tira um peso das costas. Como a vida. Como a música.

Comentários (3)

Rodrigo Torres | sábado, 26 de Abril de 2014 - 15:57

Que texto, meu amigo. Textaço!

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