Os primeiros ruídos ao fim da sessão de Ad Astra - Rumo às Estrelas (2019) eram de comparações com Interestelar (2014) e Gravidade (2013). De fato, há coisas que os une — além da temática espacial, obviamente. A semelhança com Interestelar, como se podia esperar, é a carga dramática baseada na figura paterna. Com Gravidade, a exuberância visual e um par de cenas em que o medo e a solidão do astronauta são associados a lindas imagens que remetem a uma espécie de regressão para a fase infantil e embrionária. Porém, o mais relevante aqui é apontar o fato de serem três obras características de seus cineastas — portanto, o fato de serem absolutamente distintas. Interestelar é um blockbuster grandioso, promissor, que vai construindo armadilhas para si mesmo e se torna um dos grandes erros da carreira de Christopher Nolan ao resolver um desfecho improvável com uma articulação filosófica sem sentido e bom gosto. Gravidade é um bom filme minimalista cuja potência maior reside em sua mise-en-scène complexa, e não ocupa o mais alto posto na filmografia de Alfonso Cuarón. O diferencial de Ad Astra é a habilidade de James Gray em articular a larga escala de uma exploração espacial com o intimismo das questões familiares que costuma abordar no cinema — assim sendo o seu projeto mais ambicioso e se concretizando como o maior, algo de fato espetacular.
Falando em primeiras impressões, desde sua abertura imponente e evocativa do gênero em que se filia, Ad Astra chama atenção pelo modo com que constrói o personagem de Brad Pitt. Com cenas que remontam, principalmente, a Blade Runner 2049 (2017), Roy McBride faz exames frequentes que analisam sua estabilidade psíquica. Mas aqui o "androide" examinado é um homem. Enquanto na sequência de Denis Villeneuve para o clássico de Ridley Scott os testes de linha de base se certificam que K (Ryan Gosling) não apresenta desvios emocionais — traço típico da raça humana — que possam comprometer o sistema, Roy exibe uma rigidez habitualmente atribuída aos robôs. Assim, o protagonista se revela um astronauta brilhante. Completo, pois também um militar com reflexos de um combatente, que responde intuitivamente às manobras mais complexas e aos momentos de maior perigo sem jamais se apavorar. Excelente para a Nasa, porém rachado em casa. Um homem que, com orgulho, confirma aos superiores que abdicou da vida amorosa, de construir uma família, para se dedicar à carreira na solidão espacial. Uma representação ainda mais profunda do retrato que O Primeiro Homem (2018) fez da vida de abnegação conjugal de Neil Armstrong (curiosamente, também vivido por Ryan Gosling). E, em um olhar mais amplo, pela reação admirada e satisfeita de seus chefes, uma abordagem crítica ao modo como o mercado espera que o homem médio se comporte em relação ao trabalho.
Porém, o foco de Gray é se aprofundar na psique de Roy e nos motivos de seu isolamento e dedicação ao ofício, ao país: Clifford Mcbride (Tommy Lee Jones), o maior astronauta da história dos Estados Unidos, supostamente morto em uma expedição para Netuno, e um pai ausente pelo qual Roy nutre a mesma sensação de abandono de Janet (Claire Foy), esposa de Neil Armstrong, no citado First Man. Esse sentimento é construído desde o início, em closes que sublinham a profundidade psicológica do protagonista e em narrações que complementam habilidosamente as imagens na tela. Desse modo, cada cena, mesmo no mais profundo silêncio, quando o texto é mais econômico, porta forte carga dramática. Tem sempre muita coisa acontecendo mesmo quando nada acontece. Intenso do início ao fim. James Gray e o corroteirista Ethan Gross partilham o grande mérito disso com Brad Pitt. Os cineastas apostam na capacidade expressiva do ator e ele entrega mais uma atuação inspirada em 2019. Entre estouros de luz e reflexos borrados, a fotografia de Hoyte Van Hoytema (Dunkirk) alterna criativamente os muitos primeiríssimos planos do rosto do ator, variando de acordo com a alternância psíquica do personagem e os olhares impenetráveis de seu intérprete. Assim, Roy McBride se junta a Cliff Booth (do também soberbo Era Uma Vez Em… Hollywood, de Quentin Tarantino) no panteão de personagens e composições mais instigantes do ano. E entre as melhores atuações da boa carreira de Brad Pitt.
Ad Astra constrói esse personagem e em torno dele toda uma narrativa que são, ao mesmo tempo, bastante sofisticados e diretos. As reflexões filosóficas que suscita fluem naturalmente, são pessoais, seguras e modestas, prescindem das afetações típicas de cineastas que se curvam ao legado de Stanley Kubrick e Andrei Tarkovski para conferir pedigree às suas ficções científicas espaciais. A despeito de cenas pontuais mergulhadas em vermelho, que remontam a 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) para expressar o estado de alerta emocional do protagonista, Ad Astra evoca mais o cinema blockbuster americano. Aliás, quando o Major Roy e o Coronel Pruitt (Donald Sutherland) chegam à Lua e revelam que a ocupação humana transformou o satélite natural da Terra em um grande shopping center com lojas e lanchonetes, sua frontalidade crítica e o espanto imediato que causa aludem a Vingador do Futuro (1990). O que é surpreendente e bizarro, haja vista a total contraposição entre o tratamento impecável de James Gray e os filmes de Paul Verhoeven — crônicas sobre a moral humana que imaginam um futuro apocalíptico com muito caos, violência e sujeira. E as cenas de ação de Ad Astra são mais numerosas do que o esperado, mas na medida exata, imprimindo ritmo em uma história cujo eixo é um estudo de personagem. Funcionam como um fio condutor da longa jornada de Roy McBride.
Atenção! O texto a seguir pode conter spoilers!
Essa trajetória irá desaguar no almejado encontro entre pai e filho. Na verdade, um confronto. Um confronto esperado, mas nunca decepcionante. Primeiramente, pelo modo como aproveita a figura de Clifford, ressignificante de cena anterior do filme, a mais violenta, envolvendo primatas brutais. Mais precisamente, a figura explorada é a do próprio Tommy Lee Jones: perceba como seus traços (!) e suas expressões remetem à do gorila que ataca o comandante da nave a caminho de marte. A reação de Clifford ao toque de Roy, sua estranheza ao vestir o traje espacial, enfim, todos os seus tiques denotam um misto de medo e prontidão para o (contra)ataque, reflexos típicos de um animal selvagem. Tudo isso comunica condições reais que cosmonautas desenvolvem no espaço e fornece pistas sobre o que levara o personagem ao ponto crítico em que se encontra no filme. O outro aspecto que justifica e não compromete esse desfecho previsível, assim como toda a narrativa linear que Ad Astra segue, é sua coesão com o todo. Seu objetivo não é um final surpreendente (reações injustas me obrigam a questionar: quem disse que filmes precisam sê-lo?), e, sim, mostrar o árduo caminho percorrido por Roy até, enfim, encarar um trauma. E superá-lo, apesar do alto custo emocional e do dilacerante apagamento da memória afetuosa do próprio pai. Um herói que vira, literalmente, seu grande vilão. Para, no fim dessa luta cruciante, dar novo sentido à sua vida, outrora triste porque presa ao passado.
De certa forma, Ad Astra - Rumo às Estrelas é como uma resposta do próprio James Gray ao seu trabalho anterior, Z: A Cidade Perdida (2016), no qual um pai ausente (no âmbito de sua filmografia, um pleonasmo) abandona a família e a destrói ao contaminar o filho com sua obsessão — uma aventura literalmente suicida. Ou será Ad Astra uma conversa do cineasta consigo mesmo? Aqui reside a enorme e singela beleza do filme. Em sua magnífica capacidade de focar uma exploração interplanetária no universo introspectivo de um astronauta (um lindo paradoxo) e poder contar uma história tão sensível, tão pessoal. Que encerra uma crônica pessimista sobre os rumos de uma sociedade colonizadora e predatória — a larga escala — com um desfecho otimista sobre a escala mais íntima: si mesmo. Nesse sentido, não me surpreenderei se o cultuado cineasta buscar novas histórias, superar esse tema, em projetos futuros. Ad Astra soa como o expurgo final de alguém que sofreu demais e não "aceita" mais. "I will live… and love." Um tanto óbvia, quase brega, mas desde já, no contexto de Gray e de Roy, no rol das minhas frases favoritas no cinema.
Bom texto animal. Tenho que ver esse. Tô no aguardo faz tempo. Os últimos filmes americanos que tratam do tema envoltos no mainstream eu gostei de todos. Inclusive o Interestelar que tu esculhambou. Primeiro Homem achei um dos melhores. Vamos ver qual é a desse Ad Astra, pelo que tu escreveu, estica a baladeira do jeito que acho massa
Valeu, mah! Sei que o melodrama não é a tua praia, mas James Gray faz muito bem. Creio que vá gostar, sim. Espero! rs
Beleza animal.
Gosto muito tanto de First Man como de Gravidade e de Interestelar. Mas esse é James Gray com Pitt e Jones. Hype máximo.
Bom texto. Eu não gosto de Interestelar e Gravidade. No entanto, tô no hype por esse filme (verei hoje, volto pra ler a parte com spoiler, rs). Muito por causa do Gray e também do Brad Pitt que além de bom ator, sabe escolher muito bem seus trabalhos.