Parte I:
A Tela
De início, eu gostaria de abordar uma imagem audiovisual marginal, raramente o centro das atenções: os letreiros. Imagem limítrofe, os letreiros são o primeiro alerta que as imagens a seguir - per si existentes – estão, na verdade, inseridas numa cultura de mercado, ao nos apresentarem o elenco, as personagens, a equipe técnica e os patrocinadores empenhados na produção daquele item. Dentro de uma rotina sócio-econômico-política de acúmulo de telas (telão, televisores, PC’s, videogames, gadgets, outdoors, cartazes, vitrines), os letreiros embrulham um produto e agem à maneira de uma barreira alfandegária na fronteira de um universo novo; são a senha inicial que tivemos algum fluxo de percepção da realidade suspensa ou, ao menos, (ex)partilhada.
No caso do cinema, os letreiros podem ser assumidos como forma de linguagem: podem antecipar elementos ou fatos da história que veremos a seguir; também podem ser estilizados, como um interlúdio entre o ‘apagar a luz’ e o ‘acender a tela’ na sala de cinema; e na banda sonora, podem vir acompanhados de algum som específico - uma melodia que nos antecipe a cadência do filme ou algum ruído de cena que localize onde nós estamos. Os letreiros são considerados por tudo isso a ‘Apresentação’ do filme. Eles surgem ainda no período mudo quando placas com as falas descritas faziam à vez da voz dos personagens - a palavra escrita era tornada imagem, figurada - e alçada a condição de som, na ausência deste. As legendas de tradução são descendentes desta família, entre outras espécies de matérias-primas cinematográficas: tratam-se da palavra inscrita sobre a tela (muro, parede, cartaz, quadro-negro, folha de papel, página de livro, revista, jornal, qualquer letreiro raspado na película ou digitada).
Se assistirmos ao primeiro curta-metragem de Kleber Mendonça Filho - A Menina do Algodão (2002) - logo no início, uma placa (um still) em preto & branco na tela nos adianta a lenda de uma garota-fantasma que aterrorizava os banheiros das escolas de Recife nos anos 1970. Sem esse texto inicial, talvez as imagens desse filme de terror baseado em lendas urbanas se tornariam um tanto abstratas.
Já no último curta-metragem de KMF, Recife Frio (2009), após apresentarem o elenco do filme, com a simples frase "daqui alguns anos..." nos letreiros já são o suficiente para acreditarmos que aquelas são as imagens de um porvir, quando a capital pernambucana famosa por seu calor tropical se tornará uma cidade de clima frio semi-polar. Porém, a trilha sonora reciclada de algum antigo filme fantástico nos créditos iniciais resgata-nos (na verdade, reforça o efeito) de nos perdermos no tempo; pelos ouvidos, ela (a melodia) nos soa que uma alteração no espaço e no tempo ocorreu, bem aqui, diante nossos olhos: estamos agora acompanhando o enredo de uma ficção, como poderíamos considerar todas, científica. Por isso mesmo, serão necessários documentos e provas que renovem nossa crença no percurso obrigatório exigido na construção daquele multiverso autônomo, círculos de referências que se fechem.
Não por acaso, o que nos chega em mãos vindo do futuro (e do estrangeiro) é um programa de tv argentino, uma vídeo-reportagem ecológica. Como de praxe na tele-visão, o incontestável surge: uma narração que afirma a todo instante “vejam o que digo” é suplantada por imagens de celular, fotos, propagandas turísticas, previsões do tempo e até um videoclipe com a cantora regional Lia de Itamaracá, que agora acreditamos serem arquivos de um tempo que ainda nem vivemos.
O Som ao Redor (2012) parece fechar o triângulo eqüilátero das condições de existência no presente desses arquivos do futuro. Pelos boatos que (o)correm de mais personagens vindouros numa produção ceilandense, desconfiamos que o repórter argentino (Andrés Schaffer) e o francês (Yannick Ollivier) dono de pousada em Recife Frio e revistos em O Som ao Redor (o repórter perdido no bairro, o francês na polêmica cena da reunião de condomínio) são já agraciados viajantes do tempo. Caso essa suposição seja verdadeira, poderíamos entrever uma crença KMFiana - de Platão a Walter Benjamin - na fé de que toda comunicação é fruto de transmissão humana. Portanto, para que essas imagens existam foi (será) necessário que alguém complete essa tripartite: produção, distribuição e exibição.
Enquanto nos letreiros iniciais d’O Som ao Redor, um still apresenta atores e respectivos personagens, numa diagramação aliada à uma trilha sonora que reforça a sensação do retorno aos tempos de algum bang-bang. Essa melodia faroeste soará por mais instantes enquanto veremos fotografias antigas no telão, provavelmente da mesma categoria e época da música que toca: são registros do passado. Essas e mais outras fotografias que aparecerão ao longo do filme estabelecerão um duplo elo de significados; enquanto memória serão nostálgicas pela imagem do espaço (ou paraíso) perdido e amargas enquanto sina daquilo que se repõe - tipos de recapitulação do ambiente, numa lembrança que ruas de chão batido ainda hoje são comum em periferias brasileiras, locais desassistidos de cinemas; e enquanto arquivos passarão por uma mesma natureza de representação (sejam elas originais ou piratas, digitais ou analógicas) e funcionarão como prova (ou o que restou) de um combate com o mundo real, local e contingente. E não poderíamos esquecer de outras letras que aparecerão ao longo do filme: três intertítulos recortam a divisão episódica do filme, serão eles – ‘Cães de Guarda’, ‘Guardas-Noturno’ e ‘Guarda-Costas’.
Parte II:
A metáfora
No campo imaginário do qual participa a representação cinematográfica, temos a possibilidade, sob o código do faz-de-conta, de conviver com os elementos mais brutais protegidos pela distância no espaço e no tempo, entre a encenação e a exibição, e pela diferença de olhar, entre quem está do lado de lá e de cá da tela. Os regimes comerciais de produção de imagens são os que mais privilegiam as benesses dessa demarcação: rígida pela aparência (aos conflitos os mais insolúveis são permitidos pousarem por de mesma natureza e vice versa) e dissimulada por efeitos (as reais conseqüências dos acontecimentos na filmagem causariam um profundo desapontamento no espectador). Contudo, a representação funciona também como campo de expressão e é onde poderíamos trazer à superfície, com extrema facilidade, elementos que correriam o risco de permanecerem ocultos na realidade circunspecta por uma sociedade, no nosso caso – por projeção, imaginação e/ou legalidade - o Brasil; comportamentos, histórias, personagens, situações, tipos e vidas que, seja por censura, recriminação, repreensão, condenação, eliminação, delação, crucificação, maledicência ou pregação, seriam omitidas ou perderiam o direito a representação. Neste momento, enxergamos uma primeira potência da encenação (em cena, ação!) como gesto da ordem do Político (não poderíamos esquecer que o nosso sistema eleitoral também é considerado representativo). Por trás de todas essas ideias, a noção de que a tragédia de um, equivaleria ao drama de todos, como se ocorresse um processo de identificação. Embora, invariavelmente tudo o que venha a emergir na tela - a mais simples existência, a mais rápida aparição - estará sempre marcada por significados e valores morais: uma discriminação. O cinema é o lugar por natureza do contato com um eterno outro, inclusive (ou principalmente) quando aquela é a minha imagem: ambígua instauração da diferença, do não pertencer, que o cinema demarca.
Como proceder, então?
Em O Som ao Redor, conhecemos Bia (Maeve Jinkings). Ela é uma típica dona do lar, casada e com um casal de filhos para criar. Sofre de insônia e tem as crises de sonambulismo agravada pelos latidos de um cachorro na vizinhança. Bia é também essa personagem que não se refuta em cometer atos falhos, jogar calmantes para o cachorro vizinho parar de latir e assim permitir que ela durma ou em estourar uma briga com a empregada devido um eletrônico qualquer queimado.
Enquanto mãe, Bia e família formam apenas um quadro entre outros na galeria mais ampla do que poderíamos denominar (só pelo gosto da leitura) de “tradicional família pernambucana” (termo que encontra real significância na figura do velho senhor de engenho, aquele ainda em cena, querendo restaurar a Ordem a todo custo – a analogia do tubarão). Mas o que nos interessa vem a seguir: enquanto espectadores, conseguimos avançar diante sua privacidade para saber aquilo que ela tenta disfarçar pelo risco da má impressão – em sua rotina de dona de casa, ela puxa um baseado.
O que ocorre aqui é uma acumulação de dados. Bia é Mãe, consequentemente Mulher, inserida numa rotina do lar e, ademais, sabemos que ela é dependente química. Todas essas atribuições são vistas no filme como elementos constituintes da multiplicidade (poderíamos ainda atribuir as pechas de nordestina, urbana, patroa, eletrodoméstica) na unidade do Ser (estão todas depositadas num mesmo corpo que as carrega). Desta operação, gostaríamos de ressaltar a coragem de alijar estes dois signos, “Mãe” e “Drogas”, de maneira pouco vista na teledramaturgia, embora cada vez mais presente na realidade brasileira: não temos em O Som ao Redor, o já tão explorado ‘mães com filhos drogados’, mas o novo incômodo das ‘mães usuárias de drogas’.
O filme foge de dois julgamentos ligeiros que a representação poderia produzir – a que condena ou a que apenas tolera àquela existência: se a esse gesto um tanto transgressor de ainda fumar maconha após casamento e maternidade poderíamos julgar como um desvio (estamos na ordem da Moral), o filme a descrimina no gesto simples mesmo de trazê-lo a arena pública de debate, ao expô-lo. Nesse mesmo movimento a descreve: ao ser identificado, o consumo torna-se também político (os dados acumulados instauram a diferença entre Bia e as outras mães de família que não compartilham do mesmo gesto e ao mesmo tempo a partidariza entre as que por vício ou desejo assim agem).
Nesse ponto, seria interessante pensarmos o uso da misè én scene que o consumo de cada tipo de droga realiza. Das mais difíceis de dissimular – ao exemplo da maconha com seus farelos, cheiro forte e olhos vermelhos - às mais simples de disfarçar, que por processo de montagem seriam representadas por elipses temporais. A maconha por participar de um debate público maior, funciona inclusive como um termo sinônimo para ‘drogado’, no processo de anonimato a que são submetidos o consumo dos outros tipos de ‘entorpecentes’ (lícitos e ilícitos, compradas no mercado negro ou receitadas por prescrição médica), muitos inclusive, mais comuns, consumidos em maior escala e com maiores prejuízos para a sociedade.
Uma parcela da população pretende legitimar-se dependente química. O pedido de legalização visa antes de tudo o direito a liberdade de declaração e expressão pública, aos que por assim optarem; em termos políticos, realizar o desejo de assumir-se, para os possíveis avanços sócio-políticos que daí possam surgir. Um deles, o planejamento público do espaço de consumo com a construção de parques e espaços de convivência. Um outro, a regularização do plantio e produção da cannabis, com as devidas normalizações e taxações mercantis, permitindo o mais relevantes dos ganhos para a sociedade – a redução dos danos e a preservação da saúde física e psíquica do dependente e comunidade.
Por fim, nas duas vezes que vi O Som ao Redor, um cenário circunstancial me chamou atenção numa via particular: a cozinha de Bia (Maeve Jinkings). Viajo as cozinhas de minhas tias (RN): os potes de biscoitos em cima da mesa juntos aos copos e à garrafa de café, os móveis e os utensílios antigos, porém conservados, os vários tipos de rendas e bordados, panos de mesa, panos de prato, com todas as peculiaridades de uma cozinha nordestina, incluindo o velho fogão a lenha em muitas delas como a restaurar um tipo de inteligência original brasileira, feita da disponibilidade e mistura do que esta ao redor. A essa lembrança, acrescento outra parlenda pessoal narrada por um amigo, relatando que numa viagem a Portugal, foi questionado se os cafés da manhã nas residências brasileiras eram tão ostensivos como os vistos nas novelas da Globo. Esses causos, mais do que anedotas pessoais são interessantes por porem em jogo visões de mundo. E para mim, por questionar por que continuamos a conceder ao Cinema um privilégio de exposição, se ele apenas participa de um regime indiferenciado de produção de imaginários num multiverso de representações que não cessam de expandirem-se em canais e conteúdo, onde só resta (às representações) ocuparem umas às outras? Ao mesmo tempo, restauram outros aspectos políticos dessa mesma representação, mas agora invertendo a moeda: não mais o que vemos, mas como somos vistos? A referência que o português tinha das cozinhas brasileiras, era a de uma cozinha global, imagem totalizadora a negar as diferenças regionais e a reforçar os excluídos sociais: uma mesa de café numa residência nordestina não é uma mesa de café das mansões de alto luxo da floresta da Tijuca e apartamentos do Leblon. E não custa (re)lembrar: o representado não é o real ;D
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